estudos bíblicos

A argumentação escrita paulina como chave para o entendimento de sua mensagem

Paulo discursava em suas cartas.

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Apóstolo Paulo escrevendo cartas. (Foto: Reprodução)

Muitos têm empreendido esforços para criarem sistemas, elaborarem chaves-hermenêuticas, metanarrativas, superestruturas, tipologias etc, a fim de interpretarmos os textos bíblicos. É uma tarefa demasiadamente complexa, contudo, como bem sabe o estudante sério do tema. A Bíblia é um livro de vários gêneros literários.

E, como é conhecido, cada gênero detém sua especificidade interpretativa. Alie-se a isso o trabalho da Crítica Textual, que é, no contexto interpretativo, uma parte importante da Hermenêutica, e você terá de lidar com questões manuscritológicas, filológicas, além das históricas e culturais. Daí a necessidade da construção de sistemas interpretativos.

Contudo, penso que quando nos concentramos nas características argumentativas de cada grupo literário da Bíblia, podemos adquirir respostas interessantes que nos levam à grande questão central na interpretação: o que este texto quer dizer? Quando nos concentramos nas Cartas Paulinas, vemos que as tais compõem um grupo especial da Bíblia e fazem parte do gênero que conhecemos hoje como “epistolar”, com o acréscimo de que as cartas de Paulo eram, em alguns aspectos, sui generis: consistiam basicamente de discursos, ou orações, não no sentido lato da palavra (que é o de “falarmos com Deus”), mas no sentido estrito (que é o de “falarmos em público”), uma vez que eram lidas nas igrejas (1 Ts. 5:27). A ênfase argumentativa na leitura das Cartas Paulinas, portanto, é de suma importância.

Em termos científicos, ou seja, no que se refere à ciência interpretativa, os dados devem ser avaliados como em quaisquer outras ciências, isto é, se correspondem ou não a fatos e, se sim, como tais fatos devem ser interpretados. É um fato que as cartas, que eram lidas, compunham-se de discursos, como homilias, mas mais ainda, discursos retóricos, lembrando que a palavra grega “rethor”, de retórica, significa “orador”. As cartas eram, basicamente, “orações” ou “discursos”, os quais se baseavam também na teoria da argumentação clássica, isto é, greco-romana. Uma vez que isto é um fato, pois os dados que temos sobre as cartas, sua mensagem e construção apontam para tal, devemos estabelecer um padrão, uma medida que nos leve a compreender como Paulo pensava, para podermos imaginar a real forma de suas cartas. Se este padrão existir e pudermos de algum modo descrevê-lo, teremos um modelo formal das epístolas paulinas, que nos servirá para entendermos todas, independentemente de seu conteúdo.

Parece-nos que o apóstolo Paulo, seguindo a teoria da argumentação apresentada pelos gregos, em seus estudos sobre retórica, e pelos romanos, em seus estudos sobre oratória, dividia suas cartas, cada uma, em seções, como um sermão ou homilia eram e ainda devem ser divididos. Destarte, ele deveria seguir as seções básicas de um discurso argumentativo, com as seções: exórdio (introdução), thesis (tese), pistis (provas), epílogo (conclusão). O fato é que, quando aplicamos esta estrutura formal discursiva nas Cartas Paulinas, vemos que Paulo não somente as pensou como sermões, como ele criou uma forma totalmente nova de discurso epistolar: é exatamente por isso que aquelas eram muito longas, se comparadas com outras cartas preservadas do período greco-romano. Paulo discursava em suas cartas.

É exatamente assim que desvendamos uma das maiores interrogações sobre o que Paulo que dizer em determinada passagem de uma de suas mais famosas epístolas. Sabemos que Paulo às vezes as dividia em duas partes, uma teórica e uma prática. Na seção teórica, que sempre vinha antes da prática, ele iniciava a argumentação, chegava ao ápice e terminava a seção, provando a tese a que ele se propunha defender, reiterando-a ao fim, ou no epílogo. Com Romanos foi exatamente assim: é consenso que Romanos tem uma seção teórica que vai do capítulo 1 até o 11. No capítulo 12 em diante, a narrativa e o foco da mensagem mudam para algo mais prático, corriqueiro, relativo ao dia a dia da Igreja.

Em 12:1, tratando agora e diretamente com a Igreja que lhe ouvia no discurso, Paulo os exorta a “apresentarem seus corpos como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional”. Esta expressão tem sido motivo de debates ao longo dos séculos. Atualmente, para muitos, um culto racional é um “culto sem gritos”, ou um “culto onde ninguém bate palmas”, ou “onde não há profecias, línguas”; ou um culto onde “há liturgia”. Ledo engano. Se olharmos para a parte teórica da carta, que se inicia obviamente no capítulo 1, veremos que Paulo seguiu tão à risca a teoria da argumentação de seus dias, que podemos extrair com relativa exatidão qual foi sua tese.

Normalmente, Paulo escreve uma palavra de saudação, antes do exórdio propriamente dito. Em Romanos, tal palavra de saudação compreende 1:1-7. Depois, Paulo dava uma palavra epidítica, de benevolência, chamada de captatio benevolentiae. Isso era comum em suas cartas e, em Romanos tal palavra de elogio está em 1:8-15. Após, a captatio benevolentiae, Paulo partia para uma outra seção do exórdio, que é a narratio (narração dos fatos), na qual ele sempre fazia um “apanhado histórico”, relembrando fatos passados, incluindo-se às vezes nestes relatos. Em Romanos, a narratio vai do 1:16 ao 2:27. Após a narrativo,  encontramos a tese, que é o motivo pelo qual Paulo escreveu, de fato, sua carta. TUDO o mais, dito após a tese, é em função desta. A tese de Romanos (1 ao 11, ao menos, a chamada parte teórica) é Romanos 2:28-29, exatamente após o narratio e antes das provas, posto que toda a tese, para se estabelecer, precisa ser comprovada.

Assim, na narratio ou narração dos fatos, Paulo escreve:

“A ira de Deus se revela do céu contra toda impiedade e perversão dos homens que detêm a verdade pela injustiça; porquanto o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles, porque Deus lhes manifestou. Porque os atributos invisíveis de Deus, assim o seu eterno poder, como também a sua própria divindade, claramente se reconhecem, desde o princípio do mundo, sendo percebidos por meio das coisas que foram criadas. Tais homens são, por isso, indesculpáveis; porquanto, tendo conhecimento de Deus, não o glorificaram como Deus, nem lhe deram graças; antes, se tornaram nulos em seus próprios raciocínios, obscurecendo-se-lhes o coração insensato. Inculcando-se por sábios, tornaram-se loucos e mudaram a glória do Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível, bem como de aves, quadrúpedes e répteis”. Romanos 1:18-23.

Este é o culto irracional, que é base da narração dos fatos de Paulo: todos os homens estavam inseridos em um contexto de afastamento e idolatria. Inclusive, ao que tudo indica, Abraão, que é chamado por Deus para que saísse de Ur, dos caldeus, e fosse a uma terra que o Senhor Deus o mostraria. Abraão é chamado dos povos pagãos para fundar um povo, o povo hebreu (Gn. 12:1). A partir daí, os hebreus teriam a Deus como Senhor e receberiam o Testemunho de suas próprias mãos. Mas, mesmo com a Lei, os hebreus não seriam indesculpáveis, uma vez que poderiam incorrer naquilo que a Lei condenava. E todo o homem incorre em algum erro.

Com efeito, de nada adianta um culto a Deus, uma vez que continuamos condenados. Esta condenação é expiada pela fé no sacrifício de Jesus na cruz, perfeito, para satisfazer a perfeita justiça divina. Logo, o culto a Deus, com a intenção e base de fé corretas, ou seja, em Cristo Jesus, é genuinamente um “culto racional”, como contraponto ao “culto irracional” dos homens que não conhecem a Deus. Paulo começa, na “parte teórica” da Carta aos Romanos, mostrando aos romanos a origem e a persistência de um “culto irracional”, portanto. E inicia a “parte prática”, a partir do capítulo 12, aconselhando a Igreja a que continuamente se apresentasse como “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, que é o vosso culto racional” (12:1).

Desta forma, o culto racional é o culto a Deus, sob as prerrogativas corretas, isto é, através de Cristo Jesus, enquanto o culto irracional é o dos homens que não conhecem a Deus, ou dos que julgam conhece-lo, mas rejeitam a Cristo Jesus e se colocam em posição superior, por causa de sua etnia e passado como “povo de Deus”, ou seja, os judeus.

A argumentação de Paulo, assim, ganha coesão e um sentido que, de fato, persiste por toda a carta. Apesar das digressões paulinas, que são muitas, o apóstolo sempre expressa com maestria um discurso persuasivo que respeita a teoria da argumentação de seus dias, o que faz todo o sentido. Ele sabe que na igreja há pessoas que o conhecem e o seguem, mas há também os que não o conhecem, os opositores, os confusos, os incautos.

Paulo está falando para todos, persuadindo-os, valendo-se inquestionavelmente da retórica literária para atingir o maior público possível e defende com veemência e lucidez a verdade daquilo que ele ensinava e acreditava. Isto, no fim, é o um dos motivos que continuam dando às cartas de Paulo um extraordinário sentido atemporal: o que é certo, verdadeiro e bem colocado jamais perde sua validade, jamais pode ser preterido, jamais pode ser esquecido.

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