opinião
A morte de Boechat e uma visão distorcida quanto à justiça divina
Aprendi que na hora do luto a gente deve ser moderado, discreto e até solene.
Alguns episódios contribuem para que possamos ter uma noção mais precisa do quão necessário é o incremento do estudo bíblico entre muitos evangélicos brasileiros, assim como é parcialmente não cristã a sua visão de mundo. A maneira como repercutiu nas redes sociais a tragédia que vitimou o jornalista Ricardo Boechat indica uma deficiência na forma como certo contingente de evangélicos enxerga a justiça divina, o sofrimento humano e os desígnios de Deus. Ao ler alguns comentários e assistir a alguns vídeos, o que vem ao meu coração é tristeza e vergonha.
De fato, houve, da parte de alguns, quase que uma comemoração da tragédia que se abateu sobre a família Boechat, recorrendo a brincadeiras do jornalista quanto a Deus, ao seu ateísmo e a declarações dele contra o pastor Silas Malafaia – vale registrar que o pastor Malafaia reprovou tal conduta, discordando da reação indevida daqueles que pensam ser correto operar tal julgamento; e, apenas para fins de informação, o jornalista se retratou publicamente, em 2016, do excesso verbal por ele cometido.
Antes de prosseguir, preciso observar que, conquanto esta não seja certamente a postura da maioria dos evangélicos, constitui algo que circulou nas redes sociais e que, conforme a experiência, indica povoar os pensamentos de muita gente que professa a fé evangélica em nosso país. Por isso, importa abordar o tema.
Na mente de muitos, é como se aquela batida de helicóptero com caminhão fosse a aplicação de uma pena divina pelos pecados cometidos por Ricardo Boechat. É isso mesmo? A Bíblia nos autoriza a defender essa tese, assim de modo tão desabrido, afirmando que pessoas de carne e osso, com nome e sobrenome, foram castigadas pela ira santa do Senhor, enquanto os amigos e familiares ainda choram ao pé do caixão? Essa é a misericórdia que alguns apreenderam? E, mais do que isso: essa é a visão de mundo, essa é a teologia que a Escritura chancela?
Num sentido, estamos tratando do que a filosofia e a teologia chamam de “teodiceia” (do grego, theos, Deus, diké, justiça), campo de reflexão que procura responder à seguinte pergunta: “Se Deus é bom e poderoso, por que existe o mal no mundo?” No caso da morte de pessoas “inocentes” em desastres naturais, por exemplo, a resposta exige energia mental para enxergarmos quão graves foram as consequências da Queda (e, pois, do Pecado Original) no bom mundo criado por Deus, afetando não somente a natureza humana, em sua estrutura espiritual, física e psíquica, mas também o meio ambiente, as relações sociais, a sexualidade e, enfim, toda a Criação.
Com algum esforço, até o neófito pode chegar a esse entendimento, reconhecendo que haverá um definitivo acerto de contas no porvir, mas é sem nenhum esforço que alguém, postando-se como juiz da eternidade, sentencia que Ricardo Boechat morreu de forma trágica por ser ateu, por ter usado palavras chulas contra um pastor e por ter feito piadas com Deus. Para essas pessoas, com sua ligeireza, é simples e fácil tal silogismo, o que revela, em alguma proporção, um senso de autojustiça e uma fraca percepção da doutrina do pecado – sem perceber, por exemplo, que o pecado-atitude decorre do pecado-condição, lei que infelizmente, recordando não literalmente o pensamento de Paulo aos Romanos, intoxica a todo indivíduo neste mundo velho, gentios e judeus.
Calvinistas e arminianos acreditam na doutrina cristã da Depravação Total, pela qual cada ser humano, embora não necessariamente tão mau quanto poderia ser, é mau (e limitado) em todas as dimensões de sua natureza, o que implica na colheita de males de variegados aspectos já neste mundo (seja como herança do Pecado Original, seja como efeito direto de um pecado cometido) e, ainda, na imposição de um juízo final (morte eterna, dano da segunda morte).
Mas, “para não ficar só em minhas palavras” – frase muito empregada por nós assembleianos – vou aludir a algumas passagens bíblicas acerca da justiça divina:
Lembremos inicialmente de Ec 9.1-3,12:
Deveras me apliquei a todas estas coisas para claramente entender tudo isto: que os justos, e os sábios, e os seus feitos estão nas mãos de Deus; e, se é amor ou se é ódio que está à sua espera, não o sabe o homem. Tudo lhe está oculto no futuro.
Tudo sucede igualmente a todos: o mesmo sucede ao justo e ao perverso; ao bom, ao puro e ao impuro; tanto ao que sacrifica como ao que não sacrifica; ao bom como ao pecador; ao que jura como ao que teme o juramento.
Este é o mal que há em tudo quanto se faz debaixo do sol: a todos sucede o mesmo; também o coração dos homens está cheio de maldade, nele há desvarios enquanto vivem; depois, rumo aos mortos.
(…)
Pois o homem não sabe a sua hora. Como os peixes que se apanham com a rede traiçoeira e como os passarinhos que se prendem com o laço, assim se enredam também os filhos dos homens no tempo da calamidade, quando cai de repente sobre eles.
Podemos recordar, ainda, das cogitações do Salmo 73 quanto à prosperidade dos ímpios e de como veio a Asafe a resposta de Deus sobre o fim deles. Asafe indignava-se com a qualidade de vida dos homens maus, e a resposta divina, se bem compreendida (à luz de uma interpretação sistemática das Escrituras), mostra que a felicidade dos ímpios é aparente (cf. especialmente os versículos 18 a 20).
Outra passagem de citação necessária é Lc 13.1-9, em que o Senhor Jesus fala sobre o horrível assassinato de galileus a mando de Pilatos – que determinou misturar-se o sangue deles ao sangue de seus sacrifícios – , e também sobre os dezoito que morreram no desabamento da torre de Siloé. A pergunta de Jesus evoca os temas da autojustiça e da justiça divina: “Pensais que esses galileus eram mais pecadores do que todos os outros galileus, por terem padecido estas coisas?” (…) Ou cuidais que aqueles dezoito sobre os quais desabou a torre de Siloé e os matou eram mais culpados que todos os outros habitantes de Jerusalém? Não eram, eu vo-lo afirmo; mas, se não vos arrependerdes, todos igualmente perecereis” (versículos 2,4,5).
Em Rm 5 e 6, Paulo ensina como a morte veio ao mundo pelo pecado de Adão, e como a vida eterna é oferecida gratuitamente por Cristo mediante a fé. Como a pecaminosidade é universal, a morte foi estabelecida como consequência também universal, envolvendo as dores do envelhecimento, da enfermidade e da separação entre corpo e espírito, poupando-se o salvo da segunda morte.
Frequentemente esquecemos que os pensamentos de Deus são mais altos que os nossos pensamentos, e os Seus caminhos, mais altos que os nossos caminhos (cf. Is 55.9). Esquecemos que ninguém conhece a mente do Senhor (cf. Rm 11.34). Esquecemos que as coisas ocultas pertencem a Deus, e as reveladas, “a nós e nossos filhos” (cf. Dt 29.29), mas preferimos gastar tempo com as ocultas e desprezamos as reveladas. Gostamos de viver perigosamente.
Eu mesmo não era um espectador assíduo de Ricardo Boechat. Considerava sua cosmovisão muito diferente da minha, com uma tendência algo “progressista” ou “anárquica” que, penso eu, influenciava negativamente seu discernimento da realidade política e social (muitos pensarão diferente, mas esta é a minha impressão). No entanto, toda a peroração deste texto, ainda que de modo singelo, gira em torno de coisas relacionadas à humanidade inteira: pecado, sofrimento, plano de Deus, destino eterno.
Frequentemente esquecemos que somos humanos, amparando-nos mais naquilo que nos divide do que naquilo que nos une. Aprendi que na hora do luto a gente deve ser moderado, discreto e até solene. Não gostaria de desaprender isso.