opinião
As Antiquíssimas Doutrinas da Graça de Deus
O critério mais importante usado pela Crítica Textual para determinar se um texto bíblico está mais próximo de seu autógrafo é o da “antiguidade”. Quanto mais antigo for o documento em análise, maiores são as chances de correspondência com o original. Sendo mais recente, a credibilidade diminui.
Outro critério adotado tem a ver com a citação patrística. Escolhe-se um texto de uma versão antiga e recorre-se aos pais da Igreja em busca de conferência. Ao estudioso, os pais poderão informar sobre a interpretação e o entendimento de determinados textos ao mesmo tempo em que demonstram a compreensão adotada na época. Vamos a um exemplo.
Devemos tomar Júnia em Romanos 16:7 por nome masculino ou feminino? Valendo-se do testemunho antigo, o teólogo calvinista Augustus Nicodemus[1] cita Epifânio (310 – 403 d.C), bispo de Salamina, para dizer que Júnia muito provavelmente era homem. Nicodemus argumenta ainda, retrocedendo no tempo, que Orígenes cita Júnia no masculino em um comentário da Epístola aos Romanos.
Aqui há uma vívida evocação de testemunhos antigos.
Com esta introdução, aponto que evocar a antiguidade nos estudos bíblicos é sinônimo de evocar autoridade.
Sabedor disso, o teólogo calvinista Paulo Anglada, citando Charles Spurgeon, escreve:
A velha (ênfase minha) verdade […] que Agostinho pregava, que Paulo pregava, é a verdade que tenho que pregar hoje […][2]
Spurgeon disse “velha”. O título do livro de Angadla traz o mote calvinista “As Antigas Doutrinas da Graça de Deus”. Portanto, para os calvinistas, quanto mais “antigo”, melhor. Para mim também.
Denomina-se de “As Antigas Doutrinas da Graça de Deus” o acrônimo TULIP (tulipa em inglês):
• Total Depravity = Depravação Total
• Unconditional Election = Eleição Incondicional
• Limited Atonement = Expiação Limitada
• Irresistible Grace = Graça Irresistível
• Perseverance of the Saints = Perseverança dos Santos
Para dar o tom de antiguidade a essas doutrinas, Spurgeon evoca Agostinho e Paulo. Aqui ocorre um dado digno de nota. Entre Paulo e Agostinho há uma distância de cerca de 300 anos. Logo, há uma história da Igreja anterior a Agostinho, o primeiro a formular as doutrinas citadas naqueles cinco pontos. Assim, os calvinistas estão corretos em falar sobre “antigas doutrinas da graça de Deus”. Porém, no tocante a Igreja anterior a Agostinho e posterior a Paulo, o que fora dito a respeito dos cinco pontos? Tirando o primeiro ponto e o quinto que deve ser pensado como uma perseverança dos santos de modo condicional, os demais, até onde tenho podido constatar, são negados pelos pais apostólicos e gregos. Como não posso me alongar demais nesse texto, vou apresentar testemunhos mais antigos que posso para demonstrar isso. Citarei Clemente de Roma e a Epístola de Diogneto.
Eleição Incondicional
Isso não existe nas Epístolas aos Coríntios escritas por Clemente no final do primeiro século. Clemente foi discípulo de Pedro, o apóstolo, segundo Irineu de Lion e, de acordo com Orígenes e Eusébio de Cesaréia, foi cooperador do apóstolo Paulo (Fp 4:3). Na Primeira Epístola, ele escreve: “Por causa da fé […] Raabe, a prostituta, se salvou.” O autor diz que a causa da salvação de Raabe foi a fé. Aqui deparamo-nos com uma eleição condicional (Rm 8:29; 16:13; 1ª Pe 1:2; 2ª Jo 1:1, 13).
Expiação Limitada
A Epístola de Diogneto (texto antiquíssimo contado entre os “pais apostólicos”) diz:
Se também desejas (é para quem desejar) alcançar esta fé, primeiro deves obter o conhecimento do Pai. Deus, com efeito, amou os homens. Para eles (todos os homens) criou o mundo e a eles submeteu todas as coisas que estão sobre a terra. Deu-lhes (a todos os homens) a palavra e a razão, e só a eles permitiu contemplá-lo. Formou-os (todos os homens) à sua imagem, enviou-lhes (a quem? a todos os homens aos quais Deus amou e deu a razão) o seu Filho unigênito (JOÃO 3:16), anunciou-lhes o reino do céu, e o dará àqueles que o tiverem amado (ênfase minha).
Eis uma completa declaração antiquíssima sobre expiação ilimitada (Jo 1:29, 3;16, 6:33; Rm 11:12, 15 e 1Jo 2:2).
A parte sublinhada é um arremate que nos remete ao sacrifício de Cristo disponibilizando salvação a todos, mas conquistando-a apenas para os que creem. Ali está também a doutrina da eleição condicional.
Graça Irresistível
Clemente Romano disse: “Percorramos todas as gerações e aprendamos que de geração em geração o Senhor deu possibilidade de conversão àqueles que a ele quiseram retornar.” Deu possibilidade de salvação aos que quiseram. “Querer” sempre é importante na soteriologia bíblica. Realço: primeiro tem que querer retornar (isso depois da pregação do Evangelho, óbvio) para depois se converter. Caso não queira, a possibilidade de salvação não existe. Com esta fala, “anunciou-lhes o reino do céu, e o dará àqueles que o tiverem amado”, a Epístola de Diogneto também nos conduz à doutrina da graça resistível (Mt 23:37; Lc 7:30; Jo 5:40; At 7:51; 2 Pe 3:9).
Perseverança dos Santos
Esta é bíblica, mas, como disse acima, deve ser pensada de modo condicional. Recorramos novamente ao testemunho antiquíssimo de Clemente Romano: “Já que vê tudo e ouve tudo, temamos a Ele e abandonemos os maus desejos das ações desonestas, para nos pouparmos por Sua piedade dos futuros juízos. Para onde poderia algum de nós fugir de Sua mão forte? Qual mundo receberia alguém que desertou Dele?” Observe o verbo “desertar”.
Na Segunda Epístola aos Coríntios Clemente escreve: “Eis que, com relação àqueles que não têm guardado o selo, Ele diz: ‘Seus vermes não morrerão e seu fogo não se apagará, e serão um exemplo para toda carne.’” Duas coisas importantíssimas: 1ª Clemente faz menção do “selo”. Seria esse “selo” o do Espírito citado em Efésios 1:13? Como o Capítulo VII tem como título “Devemos aspirar chegar à coroa”, a associação é inevitável. 2ª O autor diz que a fala de danação, “seus vermes não morrerão e seu fogo não se apagará, e serão um exemplo para toda carne” fora dita por Ele.
Para Clemente não existe perseverança dos santos incondicional como propõe o calvinismo e sim uma perseverança condicional.
Note: Clemente viveu entre 30 a 101 d.C e foi presbítero entre 90 a 100 d.C. Se Agostinho é um intérprete antigo, Clemente é antiquíssimo.
Penso ter demonstrado que as doutrinas da eleição incondicional, expiação limitada, graça irresistível e perseverança incondicional dos santos, apresentadas pelo acrônimo TULIP carecem de testemunho patrístico antigo mais próximo dos apóstolos e, portanto, da igreja do primeiro século. Por isso que Spurgeon só pode falar “a velha verdade […] que Agostinho (ênfases minhas) pregava […]”. Jack Cottrell diz:
Como estudante de teologia, quando li pela primeira vez os pais apostólicos, fiz anotações nas margens de todas as passagens que contradizem as doutrinas do Calvinismo. As margens de minha velha edição de Lightfoot estão cheias das letras T, U, L, I, e P, indicando declarações que mostram que estes escritores NÃO acreditavam nos cinco pontos.[3]
Spurgeon não pode contar com a antiquíssima tradição dos pais apostólicos e gregos.
Visto tal dificuldade calvinista, felizmente, a mesma não pode ser atribuída ao arminianismo clássico. Por arminianismo clássico refiro-me ao sistema soteriológico pensado pelo destacado teólogo holandês Tiago Armínio. Suas crenças, em perfeita sintonia com os pais gregos, foram sintetizadas pela Remonstrância [4] em cinco artigos, a saber:
1. Deus elege ou reprova com base na fé ou na incredulidade previstas (eleição condicional).
2. Cristo morreu por todos e por cada homem (expiação ilimitada).
3. O homem é tão depravado que a graça divina é necessária tanto para a fé como para as boas obras (depravação total).
4. Pode-se resistir à graça divina (graça resistível).
5. Se todos os verdadeiros regenerados perseveram com certeza na fé, é uma questão que exige maior investigação (perseverança dos santos).
Acima, disse que a doutrina da depravação total é bíblica e, portanto, encontrada na patrística anterior a Agostinho. Também informei que a perseverança dos santos é escriturística. Nesse caso, destaquei que ela deve ser pensada como condicional. No 5º artigo, a Remonstrância deixa a questão em aberto. Porém, os arminianos se dividem nesse ponto. Em minha opinião, seguindo Escrituras como Mt 24.12,13; Lc 9.62; Lc 17.32; Jo 15.6; cf. Rm 11.17-21; 1 Co 9.27; Gl 5.4; 1 Tm 1.19; 1 Tm 4.1; 2 Tm 2.12; Hb 3:6, 12, 14, e tomando como referência patrística os testemunhos de Clemente Romano, por exemplo, a perseverança dos santos é condicional. Os demais artigos, 1º, 2º, e 4º, todos eles estão em consonância com os antiquíssimos testemunhos dos pais apostólicos citados.
Concluindo, finalmente, devemos nos recordar que evocar a “antiguidade” significa apontar “autoridade”. Agostinho é antigo e, portanto, uma autoridade, pois está mais próximo dos apóstolos que nós. Claro que sua autoridade como teólogo não se restringe ao fator “antiguidade”. Porém, antes de evocá-lo como referência de intérprete das doutrinas da graça de Deus, é necessário fazer um percurso ascendente – dos apóstolos até ele. Mediante argumentações apresentadas, ao fazer tal percurso, os ensinos agostinianos que amparam a soteriologia calvinista não são encontrados nos cerca de trezentos anos de história do pensamento cristão anterior a ele, conforme fiz demonstrações e conforme asseverou Cottrell. Já a soteriologia de Armínio apontada nos cinco artigos da Remonstrância pode ser claramente observada. Apenas dois “pais” antiquíssimos serviram para demonstrar isso.
Esse breve texto não foi escrito para dizer que os calvinistas estão errados em usar a expressão “As Antigas Doutrinas da Graça de Deus”. A intenção foi, com algum fundamento sólido (acho que fiz isso), ressaltar que só os arminianos clássicos podem dizer a respeito de suas crenças soteriológicas como fundadas nas “Antiquíssimas Doutrinas da Graça de Deus”.
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[1] NICODEMUS, Augustus. Ordenação Feminina: o que o Novo Testamento tem a dizer? In: Fides Reformata, 2/1 (1977), p. 3. Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Mantenedora/CPAJ/revista/VOLUME_II__1997__1/ordenacao….pdf Acessado em 15 de fevereiro de 2014.
[2] ANGADLA, Paulo: As Antigas Doutrinas da Graça. São Paulo: Puritanos, 2000, p. 8.
[3]Extraído de: http://www.arminianismo.com/index.php/categorias/diversos/artigos/20-jack-cottrell/1339-jack-cottrell-sera-que-os-primeiros-pais-cristaos-ensinaram-o-calvinismo Acesso em 16 de fevereiro de 2014.
[4] Significa “protesto. Trata-se do documento contendo explicações sobre a doutrina arminiana para ser exposto em uma conferência de líderes eclesiásticos e políticos na Holanda.