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Arlequina e o Esquadrão Suicida de todo lugar

No fim, somos nós, sociedade, um gigantesco “Esquadrão Suicida”.

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Calma, que aqui não é um texto “moralista”. É, sem dúvida, sobre moral. E não é um texto com vastas pretensões científicas sobre o tema. São singelas palavras sobre um fato, que acho curioso. Todo mundo fala do “Esquadrão Suicida”, da DC Comics, cujo filme é o alvo das atenções. Ok. Todo mundo gosta de ver bandidos em enrascadas, para, com seu jeito politicamente incorreto, resolver tudo na malandragem, na violência e na sagacidade. É aquele apelo do Mal, em nós, que nos impulsiona ao Mal, que nos faz sentir atraídos pelo Mal, embora normalmente cultuemos o Bem. Agora, quando o entretenimento sofre ares de psicose endêmica (isso mesmo), então a coisa é séria.

É claro que não há nada melhor do que o entretenimento da cultura pop para nos mostrar os valores que estão em alta ou baixa. E é no entretenimento cinematográfico que isto, talvez, se evidencie de forma mais forte. Ninguém gasta – pelo menos, é o que o eu acho -, milhões e milhões de dólares simplesmente para fazer os outros rirem, chorarem, sem nenhum outro compromisso. De jeito nenhum! Há franchising de marcas famosas envolvidas, mensagens políticas, manifestações ideológicas e o que mais se imaginar em blockbusters do momento, como é o caso do “Esquadrão Suicida”.

Breve resumo para quem não sabe nada dos quadrinhos: o grupo em questão é composto pelos piores criminosos presos, em poder do governo dos EUA, que, em troca de uma diminuição de suas sentenças, aceita fazer missões como o nume sugere, “suicidas”, pois, se falharem, são “descartáveis” mesmo. Assim, para enfrentar um mal em uma cidade fictícia, “Midway City”, alguns disfuncionais vilões são convocados e liderados por uma equipe de Seals da Marinha. Frases engraçadinhas, piadas sobre loucos, histórias malucas gozadas de cada um, à parte, vem o que considero problemático.

Há uma mulher no grupo, “Arlequina”, uma psicóloga que, tratando do arquivilão “Coringa” (inimigo número 1 do “Batman”), acaba se apaixonando pelo sádico; é torturada por ele e acaba se tornando uma apaixonada devota cega, sendo considerada ainda mais perigosa e imprevisível que o vilão.

Arlequina é a epítome do politicamente incorreto, lunática, devassa, destrutiva, esquizofrênica, sociopática, etc. Mas, o que surpreende não é a personagem, em si, e sim no que a cultura pop tem feito da mesma. Arlequina foi descrita por sua própria intérprete, a atriz Margot Robie, como “uma mulher fraca”. Isto, aliás, é um eufemismo. Muito suscetível ao Mal, ela não só é fraca, como talvez seja o que há de pior dentro do famoso “Esquadrão”. Os outros, pelo que vimos, têm suas “razões” para serem maus. À exceção do Coringa – que, MESMO ASSIM, DE ACORDO COM ALGUNS QUADRINHOS, TEVE UM PASSADO ALTAMENTE TRAUMATIZANTE -, a vilã é má simplesmente porque se viu atraída pela vilania. Sua loucura é em função da maldade, que para ela é, segundo sua própria história, algo sedutor.

Arlequina ser, dentre todos do grupo famoso de vilões, a mais “chamativa”, a que mais “tipifica” as tendências de gosto do mercado que consome produtos de heróis (ao ponto de ganhar MAIS UMA revista sua, exclusiva), mostra que a disfuncionalidade psicológica parece não se limitar às páginas dos quadrinhos, mas estende-se àqueles que os reverenciam. Arlequina tem sido trabalhada, nos gibis e obviamente no filme, como uma mulher “independente”, que “faz o que quer”. Aliás, “fazer o que se quer” é um clamor subversivo de grupos que pensam que a liberdade consiste em ultrapassar limites alheios, mesmo que os seus sejam defendidos a ferro e fogo. A personagem não se exime de matar friamente, trair, causar uma carnificina se for o caso, desde que atenda aos seus objetivos.

Contudo, como faz isso com certo charme, com graça e sempre de forma erótica, o público acaba comprando um merchandising que não lhe é aparente, mas que está no cerne do conceito secular atual sobre comportamento feminino: o de que a mulher deve ter um condicionamento voltado para si mesma, para aquilo que ela “quer”, independentemente se o que ela “quer”, seja (auto)destrutivo, infame, ignominioso, blasfemo, lascivo.

São justamente estas características que parecem ganhar o público, pois é uma forma de pais e mães “cabeças abertas” legitimarem um pouco daquilo que, dentro de si, gostariam de vivenciar, ainda que fantasiosamente. As crianças, muitas ainda sem noção completa de correto e incorreto, justo e injusto, bom e mau, compram a ideia fácil, fácil e a sociedade cria a receita perfeita do caos: uma geração, no mínimo ignorante e irresponsável consigo, deixa de legado, à próxima, ainda mais ignorância e irresponsabilidade, como a forma (in)correta de pais tratarem seus filhos.

No fim, somos nós, sociedade, um gigantesco “Esquadrão Suicida”.

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