opinião
Igreja versus Estado: uma resposta a Ed René Kivitz
Se existe Deus tanto a política quanto a ciência estão de joelhos diante Dele
O pr. Ed René, meu colega de publicação na Revista Ultimato, uma figura evangélica de uma importância bem maior do que a minha para o Brasil, escreveu um texto (A fé não imuniza) na revista Veja, edição de Páscoa, esta Páscoa deste 2020 estranha e confinada que vivemos há poucos dias.
Tenho que explicar que respeito o pastor Ed René e sua esposa Silvia, e que eles têm o meu afeto e gratidão por terem feito parte da minha equipe de suporte missionário por um ano enquanto eu trabalhava numa associação de missões dedicada à tradução da Bíblia para os povos do Pacífico Sul.
Mas afeto e respeito não podem ser impedimentos para uma discussão teológica muito importante para o momento do país. Se eu não tivesse consideração por sua palavra, não me daria ao trabalho de me engajar com ela. E o faço aqui em dois textos separados.
O texto me pareceu ser uma resposta do setor evangélico que não gosta do presidente Bolsonaro e sua convocação nacional ao jejum e oração. Pastores como Ed René e outros provavelmente se irritaram a conclamação de alguém do setor político.
O presidente estaria supostamente invadindo a esfera religiosa e usurpando uma autoridade que não é sua por direito. Ed René, em seu artigo tenta fazer uma demarcação clara entre a autoridade religiosa e política. Critica a mistura entre religião e Estado, debochando até da efetividade da oração em momentos assim.
Para ele a fé saudável tem que deixar na mão da ciência a responsabilidade de salvar a humanidade em tempos de pandemia e se recolher às subjetividades emocionais do espaço privado, abandonando a pretensão de ser intérprete pública do momento em que vivemos. Ed René sem se dar conta enterra a sua fé na vala comum onde estão 9 entre 10 teólogos pós-modernos. A vala do absolutismo secular.
A definição de religião usada por Ed René, emprestada de Durkheim deixa muito a desejar e não são poucos os cientistas políticos e sociais que discutem isto. A simplificação grosseira que reduz a religião ao papel de interpretar o que escapa à razão, presume a ilusão iluminista da razão absoluta.
Supor que precisamos de outras explicações para a vida humana que a ciência não pode nos dar é superstição e obscurantismo. Se assumir humanamente capaz de decifrar o universo sem a ajuda de um Deus soberano e da fé seria então a alternativa “racional.” Na fé racional proposta pelo pastor, a ciência, e o Estado substituem a igreja (religião) como principal intérprete do universo.
Esta ideia não começou ontem nem é exclusividade de Ed René. O filósofo inglês John Milbank[1] identifica em alguns teólogos medievais, e mais tarde em Hobbes e Spinoza este desvio de percepção.
Até então não havia o que era “puramente humano” ou o secular como chamamos hoje. O saeculum não era um espaço, ou um domínio, era um tempo, o intervalo entre a queda e o eschaton, diz Milbank. Esta era a concepção sócio-política judaico-cristã. O movimento de secularização reimaginou o espaço religioso, privatizando e transcendentalizando o sagrado, concomitantemente reconstruindo a ideia da ação humana como algo que se dá em um estado de autonomia, e de poder formalizado.
Milbank demonstra que o secular como um domínio tanto em teoria como em prática, infelizmente, foi criado por teólogos e filósofos cristãos, como fez o Pr. Ed René em seu artigo à Veja. Ao presumirem a existência do universo de forma autônoma, ele passa a ser conhecível por uma ciência também autônoma, e pode ser gerenciado por um poder autônomo, o Estado.
Desta mesma teologia se infere a religião privada, e possibilita a Hobbes o desenvolvido do conceito do “espaço político”, para Milbank o âmbito do poder em forma pura[2], forma esta que não existe numa concepção de sociedade onde religião e Estado andam junto.
Portanto com Hobbes Grotius e Spinoza, a política atinge o status de esfera autônoma, e é concebida como poder puro. Diz Milbank:
“O entendimento científico-secular da sociedade foi desde o início o autoconhecimento e autoconstrução do secular como um espaço de poder.”
A teorização do espaço político como um sendo um espaço secular, resultou na independência da “accountability” que a religião lhe obrigava a ter, e as consequências disto são devastadoras para a história humana.
Poucas décadas depois deste desvio teórico perigoso, a revolução francesa nos mostrou claramente que tipo de poder o Estado secular tinha chegado para instaurar. O revolucionário Denis Diderot resumiu em uma frase o projeto político da revolução francesa.
“O homem só será livre quando o último rei for enforcado com as vísceras do último clérigo.”
Na visão dos revolucionários, a presença da religião como força socializante, intérprete do universo e portadora da verdade moral, teria que ser substituída pela razão humana, através de homens iluminados que ditassem o certo e o errado, o passado e o futuro. O novo Estado se tornou a ontologia e a práxis do homem sem Deus.
O homem de fé cria um problema político para o tirano porque a fé põe a todos em pé de igualdade. A fé tira do Estado a exclusividade e, portanto, investiga o seu poder. A fé demanda que governantes e cidadãos se ajoelhem diante do mesmo Deus, e do mesmo código moral.
O Bolsonaro que se ajoelha é igual a todos os brasileiros, pobres ou ricos, políticos ou não. Se existe Deus, ninguém pode se arrogar o direito de se apoderar sozinho do destino de uma sociedade. Se existe Deus tanto a política quanto a ciência estão de joelhos diante Dele.
A fé e Estado ao contrário do que propõe o meu digno colega não é um problema, mas antes é um remédio muito salutar contra a tirania.
Mas esta fé não pode ser meramente filosófica, ou de cunho privado, ela precisa estar ancorada na história e na instituição. Se ela é reduzida à esfera interna apenas, se tornando uma mera especulação espiritual individual se torna irrelevante.
É por isto que o movimento que quer separar Jesus de religião: – “quero Jesus, mas não quero a religião” – soa sábio, mas na verdade é uma proposta idiota e inútil. Idiota como proposta de fé, porque eu se eu quero inventar um Jesus que se adéqua a mim apenas, estou desprezando o Jesus histórico e, portanto, duvidando da própria origem da fé que pretendo ter.
E é inútil porque deixa de ser o combustível mais importante para a emancipação política disponível ao ser humano para se tornar um mero afago emocional, um mecanismo de autoajuda.
A espiritualidade pós-moderna desvinculada da tradição religiosa é conveniente à tirania estatal. Uma vez que eu me desligo de tudo o que torna a religião uma herança universal e histórica, que vai além de minha percepção limitada de individuo, eu destruo o poder que ela tem como contraproposta de unificação social.
Se este artigo representa o pensamento de Ed René, ele usa como fundamento de seu argumento uma antropologia secular. Pode ser que o fez inadvertidamente sem pensar à fundo no que propunha. Mas vamos dar a ele mais crédito do que isto.
Vamos dizer que Ed crê numa antropologia iluminista que como eu disse é abraçada por muitos outros teólogos pós-modernos. Por coincidência, no artigo de maio da revista Ultimato eu discuto o problema da antropologia secular um pouco melhor com um pouco mais de Milbank. Mas para resumir, o ser humano independente do Divino, autossuficiente e dono exclusivo de sua razão, é o ser secular.
Numa concepção bíblica, ao contrário do que presume o pastor, o ser humano não alcança o saber à força da razão, pelo contrário é confundido por ela. Ele não habita num espaço do universo onde a presença dinâmica e relacional do Criador pode ser isolada do existir em forma temporal e humana.
Se o ilustre pastor entendesse assim a condição humana, condição de ser dependente, incrustado no ser de Deus, ele saberia que não existe ciência sem Deus, não existe razão sem revelação e que a melhor maneira de vencer uma pandemia é orar e jejuar sim, para que a misericórdia do amor infinito nos encontre dignos de seguir vivendo.
[1] Milbank, J, Theology and social theory: Beyond secular reason, 2008.
[2] https://olivre.com.br/o-cristao-tem-mais-tendencia-totalitaria-do-que-o-ateu (Um outro artigo que escrevi sobre o mesmo tema).