opinião
Morte na panela!
Liberalismo e pós-liberalismo teológico são veneno com o mesmo potencial mortífero do “fermento dos fariseus”
Convido o prezado leitor a examinar com interesse o texto de II Rs 4.38-41, que narra um dos vários episódios da vida do profeta Eliseu, lá pelos idos do Séc. IX a.C., no que chamamos de “Reino do Norte” (Israel depois da divisão).
Antes, um lembrete: o ministério do profeta Eliseu é absolutamente incomum, e está preenchido por episódios estranhos, inserindo-se no rol daquelas histórias bíblicas que desafiam a mentalidade do Séc. XXI. Na verdade, toda a Escritura desafia a mente (e a vontade) humana em qualquer época, mas eu me refiro aqui a narrativas que de tão formidáveis ou aparentemente sem propósito exigem de nós um esforço adicional de interpretação – e, mais do que isso, de aplicação aos nossos dias.
Em resumo, estando em Gilgal, numa época de muita fome, o profeta pediu que um dos seus discípulos providenciasse um caldo de ervas, mas o moço, sem conhecer a natureza de certa “parra brava” (espécie de trepadeira venenosa), utilizou-a no cozimento, para logo perceberem, durante a refeição, que havia “morte na panela”. Eliseu resolveu o problema adicionando farinha, e todos puderam se alimentar.
Como sói acontecer em registros veterotestamentários, e especialmente nas intrigantes cenas da vida de Eliseu, o episódio não se faz acompanhar por uma “moral da história” nem por explicações sobre o significado doutrinário-teológico da ocorrência. O autor apenas registra o fato e passa adiante.
De acordo com a International Standard Bible Encyclopaedia, a planta em questão seria a Citrullus colocynthis. Sua ingestão pode provocar irritação severa no estômago e no intestino, diarreia com sangue, problemas nos rins, urina com sangue e incapacidade de urinar, além de convulsões, paralisia e morte. Para combater a intoxicação, aponta-se a ingestão de uma solução diluída de ácido tânico, seguida de grandes quantidades de bebidas contendo ovos, em virtude da albumina (informações extraídas do site WebMD, citado abaixo).
Minha esposa, que é agrônoma, disse-me que a adição bem-sucedida de farinha, afastando o veneno do caldo de ervas, somente poderia ser explicada por reação química se a farinha empregada fosse sorgo, porque este contém muito tanino – registre-se que, à luz do contexto escriturístico, considero fortemente o caráter miraculoso, que pode ter consistido na determinação divina para que Eliseu, ainda que sem conhecimento da planta, fizesse a coisa certa, ou pode ter sido a atribuição à farinha de efeitos que ela naturalmente não teria.
Prosseguindo, minha esposa disse-me que em situações de estresse, como a seca, as plantas podem concentrar determinado princípio ativo. Pode ter acontecido de os frutos (colocíntidas) estarem com uma concentração maior da substância, algo que poderia ser fatal, mas cujos efeitos foram interrompidos porque alguém – ainda antes do milagre de Eliseu – clamou “morte na panela!”. E aqui vale frisar: o milagre serviu para que todos se alimentassem, mas antes disso houve um gesto natural de reação à possibilidade da morte.
A interpretação do texto conduz-nos ao entendimento de que houve ali um dentre tantos milagres no ministério de Eliseu, sucessor de Elias, milagre este que, como tantos milagres do Antigo e do Novo Testamento, apontam para a imanência de Deus, Seu cuidado para com o Seu povo, Seu interesse nas coisas humanas, Seu poder sobre a natureza, e especialmente Seu compromisso com o ofício de Eliseu.
Em sede de aplicação, podemos afirmar que o mesmo Deus Se importa conosco hoje, está atento às nossas necessidades e tem poder sobre todas as coisas. Recorrendo ao conjunto da Bíblia, podemos igualmente afirmar que milagres acontecem em nossos dias, e que, se o Senhor quiser, podemos ser agraciados com benefícios sobrenaturais de Sua parte, ainda que isto não seja a regra cotidiana – não podemos desprezar a bendita Providência.
Estando o leitor e eu munidos dessas informações, proponho uma reflexão que está relacionada a temas como revelação, inspiração e canonicidade.
Sendo um herdeiro (pentecostal) do Cristianismo protestante e ortodoxo, estou convicto de que a Bíblia narra a história da salvação, e que é com base nessa história que devo interpretar a Palavra de Deus e suas muitas histórias, entendendo que nada na Escritura é desprezível, insignificante ou de menor densidade espiritual.
Tomando de empréstimo do mundo jurídico o provérbio “Não existe letra morta na lei”, compreendo que tudo o que está na Bíblia é proveitoso para o Homem em qualquer tempo e lugar (cf. Rm 15.4; I Co 10.11; II Tm 3.16), embora nem sempre estejamos suficientemente atentos a determinados princípios, profecias, narrativas ou doutrinas que a Bíblia condensa desde a Antiguidade.
Cabe, neste passo, uma nota: acredito que no curso da jornada da Igreja surgem movimentos legítimos, não com novas doutrinas, mas com novas ênfases, para que retornemos à Palavra. É desse modo que enxergo, por exemplo, o luteranismo, o calvinismo, o puritanismo, o pietismo, o metodismo, o movimento holiness, o pentecostalismo, entre outros. E não será desarrazoado afirmarmos que a essência da mensagem dos profetas do Antigo Testamento era uma convocação ao cumprimento autêntico, dedicado e espiritual da Lei de Deus entregue a Moisés (cf. Is 8.20; Jr 8.8; 9.13; 26.4; 44.10; Ez 22.26; Dn 9.10,11,13; Os 4.6; 8.1,12; Am 2.4; Mq 4.2; Hc 1.4; Sf 3.4; Zc 7.12; Ml 2.7-9; 4.4).
Voltando ao ponto, entendemos que, ao lado da infalibilidade da Escritura Sagrada – suas promessas e profecias não podem falhar – e da inerrância da mesma Escritura – os textos autógrafos não continham nenhum erro, incluindo seus dados cronológicos, históricos, geográficos, culturais ou de qualquer outra natureza -, cremos que a Bíblia é plena em sua extensão, caracterizando-se as suas partes como igualmente inspiradas, sem distinção quanto ao teor, digamos, “revelacional”.
Se pensássemos, como pensam teólogos liberais, que existem na Escritura partes divinamente inspiradas e partes não divinamente inspiradas, teríamos um grave problema, e faríamos substituir em nossos corações a autoridade da Bíblia pela autoridade de professores modernistas de teologia, os quais até hoje discutem quais seriam realmente as porções de seu “cânon dentro do cânon”.
Selecionando, pelo método histórico-crítico, as passagens de sua preferência, teólogos liberais costumam escolher textos que lhes pareçam compatíveis com suas ideias pré-concebidas, ou textos morais e doutrinários, com exclusão de textos supostamente carregados de mitologia judaica. Nesse sentido, excluem de seu cânon particular passagens que teriam sido elaboradas, segundo eles, em conformidade com aspectos sociais e culturais que não mais se aplicariam à atualidade.
É nessa esteira que liberais, por exemplo, classificam Paulo como misógino e alguns de seus textos como inaplicáveis à sexualidade contemporânea, o que também passa a ser utilizado pelos teólogos pós-liberais (pós-modernistas infiltrados na teologia cristã).
Liberais e pós-liberais são irmãos siameses: enquanto o primeiro grupo, trabalha com as ferramentas da chamada “Alta Crítica”, manipula o texto bíblico para submetê-lo ao racionalismo e ao existencialismo, o segundo grupo, por meio do emprego de teorias literárias desconstrucionistas, interpreta a Bíblia como um conjunto de narrativas que contam a trajetória de Deus em Sua relação com a humanidade, sendo a Escritura, em sua concepção, não exatamente a revelação escrita, mas a maneira como judeus e cristãos interpretaram as experiências que tiveram com Deus nessa trajetória.
Pensando especificamente no que chamamos de “pós-liberalismo teológico”, a ideia subjacente é que não importa propriamente o texto em si (de papel), pois o conceito de texto estaria relacionado a discurso, perspectiva, narrativa, construção ou argumentação, tudo isto carregado de idiossincrasias, pressupostos e interesses de diversas espécies. É assim que o teólogo pós-liberal não se preocupa tanto com a estrutura do texto, nem com uma interpretação regida por métodos racionalmente engendrados, mas, sim, com aquilo que o texto tem significado para o leitor ou comunidade de leitores, e com o modo e propósito pelos quais o texto vem a ser administrado pelos leitores contemporâneos.
Se o prezado leitor houver clamado agora “Morte na panela!”, penso que caminhamos juntos, porque é disso que se trata: liberalismo e pós-liberalismo teológico são “morte na panela”, veneno com o mesmo potencial mortífero do “fermento dos fariseus” (cf. Mt 16.6,12; Lc 12.1), “que é a hipocrisia” (cf. Lc 12.1, in fine). Estamos prontos, então, para dizer de maneira muito clara: diante da intoxicação mortal, a atitude correta é alertar que, sim, existe veneno na panela. Não precisamos morrer silenciosamente. Precisamos vencer o mal.
É certo que II Rs 4.38-41 não é uma história sobre venenos espirituais, e se disséssemos algo assim poderíamos ser justificadamente arrolados entre os que adotam o equivocado método alegórico. Todavia, utilizo a passagem para, aproveitando a eloquente expressão “Morte na panela!”, convidar o leitor a estar atento quanto a falsas doutrinas e ideias espúrias que teimam em adentrar ao campo cristão como se fossem frutos colhidos da árvore da Palavra do Senhor.
Meu ponto aqui é a necessidade de imitarmos o exemplo dos discípulos de Eliseu, que, na iminência da morte, reagiram como seria natural. Mais uma vez, o texto em análise não é sobre o que poderíamos denominar “atitude apologética”, mas remanesce o princípio de que, ao identificar toxina, a reação correta e natural deve ser a de combatê-la imediatamente.
Dito de outro modo: partindo da premissa de que II Rs 4.38-41 conta uma história real sobre um milagre que resolveu um problema de fome comunitária, podemos, no entanto, aproveitar a expressão “Morte na panela!” como metáfora para qualquer veneno espiritual identificado entre o povo de Deus, o que deveria despertar nos crentes em Jesus a mesma reação que houve entre os discípulos do sucessor de Elias.
É triste constatar que em nossos dias o liberalismo e o pós-liberalismo têm sido ingeridos gostosamente no meio cristão evangélico, agora com uma intromissão organizada no meio pentecostal, embora vestindo-se de roupas belas. Não temos Eliseu, mas temos o Senhor Jesus Cristo, que é Maior do que Eliseu. E então? Por que não sentimos o estômago doer? Por que não percebemos o perigo dessas ervas venenosas? Talvez estejamos no estágio inicial: alguém já come o fruto, e os males virão.
Referência bibliográfica:
International Standard Bible Encyclopaedia, The. Jamer Orr (editor geral). Grand Rapids: Eerdmans Publishing, 1946, V. III (2107-2820).
Endereço eletrônico: https://www.webmd.com/vitamins/ai/ingredientmono-798/colocynth.