opinião

O cavalo de troia do pentecostalismo pós-liberal

Mais alguns questionamentos sobre o livro “Experiência e hermenêutica pentecostal”

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Experiência e hermenêutica pentecostal. (Foto: Divulgação)

A publicação, nesta coluna, do artigo Teologia liberal infiltrada na Assembleia de Deus teve uma recepção que considero positiva, pois despertou atenção para algo que, embora relevante, permanecia às escuras. Felizmente, percebi que muitos leitores compreenderam a natureza do tema, mas também houve quem não pensasse assim.

Com efeito, alguns disseram que o texto (e especialmente o uso do adjetivo “liberal”) foi injusto, desproporcional ou exagerado; outros entenderam que a crítica não teve fundamento; outros, ainda, enxergaram no ensaio um tipo de “caça às bruxas”; e houve quem nele vislumbrasse toques de ressentimento ou intriga de política eclesiástica.

Achei bastante divertida essa reação, principalmente porque até agora não tive conhecimento de nenhum escrito que, em resposta, comprovasse que o livro Experiência e hermenêutica pentecostal é uma obra de teologia conservadora.

Não estou a pedir que promovam o que em direito se chama “prova diabólica”, ou seja, a comprovação de uma negativa, o que nesse caso seria a demonstração de que o livro não é liberal: peço simplesmente que venham a público e comprovem que a obra referida consiste numa peça em defesa da teologia sistemática pentecostal. Isto, que seria suficiente, é impossível, justamente porque a perspectiva ali defendida se orgulha de não ser conservadora, dogmática, fundamentalista, nem submissa ao método histórico-gramatical.

Na realidade, a orientação ideológica do mencionado livro é progressista e desconstrucionista, pois todo o seu discurso apresenta a teologia conservadora como escrava do racionalismo, do etnocentrismo e do elitismo, ao tempo em que propõe uma abordagem teológica que valorize êxtases, performances, intuições e afetos. Não posso, enfim, ser acusado de lembrar o que o próprio livro diz de si mesmo, tampouco estou proibido de estabelecer correlações entre o conteúdo do livro e certos pressupostos ideológicos, axiológicos e epistemológicos a que os autores e seu editor se filiam.

Tamanha é a importância do tema que não penso em deixá-lo de lado; antes, pretendo prosseguir com estudos acerca dessa proposta perigosa que é a aplicação, ao pentecostalismo, dos pressupostos e métodos da hermenêutica pós-liberal, eivada de pós-modernismo. E, para fastio de alguns, insisto em fazê-lo num site popular, porque estou bem certo de que restringir esse debate a livros técnicos e ao ambiente acadêmico é condenar igrejas à convivência com pastores dominados por uma visão subjetivista e criticista da Palavra de Deus.

Como meu ensaio foi considerado fraco e infundado por aqueles que empurram tal cavalo de troia para dentro da Assembleia de Deus, sei que eles não se irritarão comigo se eu continuar a escrever, pois sou apenas e tão somente um evangelista nordestino de pouca instrução acadêmica, incapaz de sentar para debater com os próceres da nova hermenêutica pentecostal que se anuncia como grande novidade em terras brasileiras. Que bom terem vindo nos salvar de nosso racionalismo, dogmatismo, modernismo e fundamentalismo. Não quero imaginar o que seria de nós no Séc. XXI sem os pós-liberais e sua sofisticação metodológica!

Não sei se minha formação em direito tem que ver com isso, mas gosto de trabalhar com provas – se virem algo inquisitorial nessa assertiva, lembrem-se de que é com provas que se constrói qualquer procedimento destinado à descoberta da verdade. Ninguém menos que o escritor bíblico Lucas se dedicou a apresentar “muitas e infalíveis provas” em seu relato da vida e obra de Jesus (cf. At 1.3).

Como leitor, costumo fazer perguntas ao texto, e as respostas que obtenho me ajudam a formar minha convicção – no caso dos juízes de direito, diz-se que fundamentam suas decisões pelo “livre convencimento” ou “persuasão racional”, sopesando as provas e indícios de acordo com o seu valor no caso concreto. Nesse sentido, as perguntas consistem em valiosos instrumentos de elucidação.

Assim, mais do que fornecer respostas sobre esse problema, que considero grave, do pentecostalismo pós-liberal e esquerdista, deixarei aqui algumas indagações destinadas à reflexão e ao balizamento do que me preocupa, a fim de que o leitor possa compreender em que terreno estamos a pisar. Vejamos:

  • Se a Bíblia é a Palavra eterna de Deus, como cremos, é adequado imaginarmos que a cada época um novo método hermenêutico seria necessário? Ou são as ênfases teológicas que ganham nova intensidade, assim como a aplicação do texto ganha novas feições a depender das circunstâncias históricas?
  • Se a exegese conservadora é produto da modernidade, como dizem os autores, não seria sua proposta uma filha da pós-modernidade? Acaso isso é bom?
  • Se o método histórico-gramatical é racionalista, por que o Novo Testamento, ao citar o Antigo, se vincula ao sentido do texto? Ou será que os escritores neotestamentários também interpretaram o Antigo Testamento a partir de “pressupostos do leitor”? Nesse caso, o Novo Testamento seria cumprimento do Antigo ou uma adaptação conforme o entendimento da Igreja Primitiva?
  • Há fundamento histórico-teológico para afirmar que os métodos histórico-crítico e histórico-gramatical se abeberam da mesma fonte racionalista?
  • O que os autores entendem da afirmação de que Atos 2 é uma “ficção historicizada”? Lucas selecionou, da história, fatos que ilustrassem seu entendimento teológico guiado pelo Espírito ou ressignificou acontecimentos de seu tempo à luz de tradições judaicas e de suas próprias premissas religiosas?
  • A teologia narrativa é sempre válida? Não há uma gritante diferença entre a proposta dos autores e desenvolvimentos contemporâneos em torno de textos narrativos por parte de teólogos pentecostais?
  • Estou errado em afirmar que, pelos referenciais teóricos e metodologia aplicada, os pressupostos dos autores são esquerdistas, pós-liberais e pós-modernistas? Esses pressupostos influíram na obra ou os autores foram apenas “científicos”?
  • Há como conciliar uma cosmovisão progressista com uma teologia que busque efetivamente compreender o significado do texto bíblico? Ou os autores não são progressistas? São conservadores?
  • É dado aos crentes pentecostais a discussão dos postulados do livro ou ele só pode ser conhecido e debatido pela “classe falante” dos especialistas acadêmicos?
  • Por se tratar de um livro publicado pela CPAD e aprovado pelo Conselho de Doutrina, ele teria de observar a Declaração de Fé das Assembleias de Deus no Brasil ou isso não é importante?
  • A Comissão de Apologética da CGADB foi informada de que o método exegético que adota é considerado no livro como racionalista?
  • Os autores são membros da Rede Latino-americana de Estudos Pentecostais (RELEP), como apontado no livro. Se tivesse de se definir em termos de valores sociais, a orientação dessa Rede de Estudos seria mais conservadora ou mais progressista?

Sem mais perguntas, Meritíssimo.

Referência da obra mencionada:

OLIVEIRA, David Mesquiati; TERRA, Kenner R. C. Experiência e hermenêutica pentecostal: reflexões e propostas para a construção de uma identidade teológica. Rio de Janeiro: CPAD, 2018, 224p.

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