opinião
Uma resposta ao desrespeito de Gilmar Mendes
Não somos negacionistas, como sugeriu o ministro.
É inconstitucional o fechamento compulsório de templos religiosos, impedindo o livre exercício da fé. Começo com este tom, pois não há como ser conivente com essa ilegalidade. Aliás, jamais imaginei que um dia teria de fazer este tipo de defesa em nosso país, que sempre prezou pela liberdade religiosa.
Devo dizer que uma coisa é buscarmos recursos para que os nossos direitos constitucionais não sejam violados, outra coisa é defender aglomeração e reuniões que desrespeitam medidas sanitárias. Não somos negacionistas, como sugeriu o ministro Gilmar Mendes, demonstrando desconhecimento sobre o trato da igreja com a pandemia de covid-19.
Quero deixar de lado aqui a hipocrisia. Afinal, desconheço qualquer igreja que esteja militando em causas ideológicas absurdas, como negando o uso de máscaras ou a necessidade do álcool em gel, ou mesmo desconsiderando a necessidade de distanciamento social.
Alguns líderes até mesmo optam por não se reunir, ainda que possam. Poder se reunir e não querer é uma coisa. Querer se reunir e não poder é outra. Eu explico: porque alguns não se deram conta que nossa luta é pela liberdade, nossa liberdade religiosa.
O imbróglio se deu pela grande confusão que virou o Supremo Tribunal Federal (STF).
O Conselho Nacional de Pastores do Brasil (CNPB), sob liderança do Bispo Dr. Manoel Ferreira e Bispo Samuel Ferreira, já havia ingressado com ação junto à Corte para tentar reverter o fechamento indevido dos templos e as proibições de cultos presenciais.
A ação caiu sob a tutela do ministro Gilmar Mendes, que não teve pressa em fazer sua análise.
Porém, depois que o ministro Kássio Nunes Marques decidiu seguir a Constituição, entendendo na ação movida pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure) de que estados e municípios não poderiam impedir os cultos, inclusive apontando algumas medidas para permitir a retomada das reuniões presenciais, o ministro Gilmar Mendes decidiu analisar outra ação movida pelo Partido Social Democratico (PSD), desta vez em decisão contrária às atividades religiosas em São Paulo.
Para Gilmar Mendes, ainda que a Constituição seja clara ao afirmar ser “inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias” (art. 5º, VI), ao mesmo tempo em que estabelece uma proibição clara a União, Estados e Municípios de “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público” (art. 19. I, CF), o ministro ainda assim entende que esse direito é violável sob alegação de que o foco é a proteção da saúde do brasileiro.
Primeiro que, diante da alegação de que se faz necessária a restrição por conta da covid-19, espera-se no mínimo que sejam apresentadas comprovações científicas de que o fechamento compulsório de templos religiosos reduziria os riscos impostos pela doença, o que claramente não há. Qualquer ditador facínora poderia usar então a pandemia como desculpa para irromper direitos fundamentais e impedir a livre manifestação de pensamentos, liberdade religiosa e direito de ir e vir. É o que vemos!
O ministro então desce o nível, com seu jeito desrespeitoso de sempre: “Quer me parecer que apenas uma postura negacionista autorizaria resposta em sentido afirmativo. Uma ideologia que nega a pandemia que ora assola o país, e que nega um conjunto de precedentes lavrados por este Tribunal durante a crise sanitária que se coloca”.
Ora, não seria negar a existência da crise permitir o livre exercício religioso, mas reconhecer a já comprovada importância da fé para tempos como os que vivemos, quando igrejas somam a sociedade para sanar as suas mazelas, levar consolo e apoio emocional, além de tratar com a saúde espiritual. Cristãos são um povo ordeiro, que respeitam a lei e que seguem de forma disciplinada as orientações para os cultos em tempo de pandemia, tanto é que recorremos ao Judiciário para colocar no lugar os chefes executivos de estados e municípios.
Se o ministro não acompanha os trabalhos realizados pelas igrejas evangélicas, que representam um enorme percentual da população, é preciso abrir os olhos para o que acontece neste país. Foram os evangélicos quem disponibilizaram os templos para servir de centros de apoio para o combate da covid. Que distribuíram alimentos para os que estavam passando necessidades. Também preparam kits de proteção contra essa doença, incluindo álcool gel e máscaras. Além de apoiar a União, Estados e Municípios para alcançar aqueles em lugares em que o Estado não consegue chegar. Mendes diz em sua decisão que a “tragédia” requer “colaboração de todos os entes e órgãos públicos”. Ninguém colaborou mais que as igrejas.
Quanto a tese refutada pelo ministro, onde afirma que “não há como se falar que o ato normativo impugnado viola, ao menos diretamente, o direito fundamental ao exercício da liberdade religiosa”, ele desconsidera que já há mais de um ano estamos nesta situação, onde a tal “excepcionalidade” vem virando regra, mesmo sem eficácia comprovada das tais “medidas restritivas de enfrentamento da pandemia”.
O Advogado Geral da União, ministro André Mendonça, emitiu brilhantemente parecer favorável ao acolhimento da arguição de descumprimento de preceito fundamental, apontando decisões do próprio Supremo que estabelece que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem observar o âmbito de suas competências constitucionais.
É, precisamente, o que dispõe o artigo 3º, § 1º, da Lei nº 13.979/2020, que diz:
Art. 3º (…) (…) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
Mendonça aponta justamente a falta de embasamento técnico e científico para a imposição de medidas que proíbam o livre exercício da fé, além de enfatizar que essas restrições, com base em critérios técnicos e científicos, deveria ser definida em teor temporal, ou seja, com prazo de vigência.
Por sua vez, o advogado-Geral da União cita o dispositivo do Regulamento Sanitário Internacional, que estabelece o seguinte teor:
1. A implementação deste Regulamento será feita com pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas.
2. A implementação deste Regulamento obedecerá à Carta das Nações Unidas e a Constituição da Organização Mundial da Saúde.
3. A implementação deste Regulamento obedecerá a meta de sua aplicação universal, para a proteção de todos os povos do mundo contra a propagação internacional de doenças.
4. Os Estados possuem, segundo a Carta das Nações Unidas e os princípios de direito internacional, o direito soberano de legislar e implementar a legislação a fim de cumprir suas próprias políticas de saúde. No exercício desse direito, deverão observar o propósito do presente Regulamento. (Grifou-se).
Temos também o parecer do procurador-geral da República, Augusto Aras, que lembrou que o livre exercício dos cultos religiosos “visam a proteger, desde que asseguradas as medidas sanitárias indispensáveis para seu o exercício coletivo, a saúde mental e espiritual da população brasileira, que precisa de assistência religiosa para o enfrentamento de momento tão grave da epidemia do novo coronavírus”.
O Procurador Geral da República também lembra que “o culto, por externalizar e identificar o fenômeno religioso, representa elemento primordial da liberdade religiosa. Disso resulta que a liberdade de culto se insere no dever prestacional do Estado de assegurar a assistência religiosa, de que é exemplo disso a obrigação alternativa na escusa de consciência e as capelanias”.
“O dever de o Estado assegurar a assistência religiosa por meio de medidas que viabilizem o exercício da liberdade de culto fica ainda mais evidente em situações de guerra, de pandemias/epidemias, ou de outras calamidades públicas que fragilizam sobremaneira a saúde mental e espiritual da população”, completa Augusto Aras.
Neste contexto, cabe destacar que a decisão do ministro toma como argumento, além da própria negação de que o direito fundamental de liberdade religiosa está sendo violado, a ideia estapafúrdia de que possa haver “valor constitucional concorrente de maior peso” ao livre exercício de culto. Sugerindo que a proteção à vida seria concorrente de peso maior que o direito à liberdade religiosa. Sob que critérios? Quais argumentos comprovariam que os cultos cristãos estão colocando em risco de morte seus participantes?
Além disso, o ministro Gilmar Mendes desconsidera a argumentação exposta de que a liberdade de consciência também está sendo violada, mas é justamente em sua decisão que vemos uma clara imposição de ideias estapafúrdias, inclusive se envolvendo em questões de culto, como a própria consciência do indivíduo sobre a morte, que de acordo com o Cristianismo é superada através de Jesus Cristo, que disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Aquele que crê em mim, ainda que morra, viverá”.
Pois bem. Mesmo que venhamos a considerar que as alegações do ministro sejam sinceras, que ele realmente tem preocupações com a saúde do brasileiro e com sua sobrevivência diante da grave crise, preciso questioná-lo sobre alguns fatos que não testemunham desta preocupação:
Transportes públicos lotados, desemprego em massa, medidas que impedem o sustento e sobrevivência das famílias; acaso isso não é um atentado contra o direito à vida?
Ou é possível viver sem se alimentar?
A covid-19 não é transmissível no transporte público?
Desemprego não afeta a saúde do trabalhador?
Concluo afirmando que liberdade é o direito dos direitos. Não existe democracia sem liberdade. Inexiste Justiça se não houver liberdade. Neste sentido, não há motivos razoáveis para entendermos como constitucional ou legal as restrições que vêm sendo impostas, como o próprio direito de ir e vir, de trabalhar, de cultuar e, ao que tudo indica, de questionar a eficácia das medidas impostas.