estudos bíblicos
Ainda não me conheceis, Filipe?
“Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta.”
“Disse-lhe Jesus: Eu sou o caminho, e a verdade e a vida; ninguém vem ao Pai, senão por mim.
Se vós me conhecêsseis a mim, também conheceríeis a meu Pai; e já desde agora o conheceis, e o tendes visto.
Disse-lhe Filipe: Senhor, mostra-nos o Pai, o que nos basta.
Disse-lhe Jesus: Estou há tanto tempo convosco, e não me conheceis, Filipe? Quem me vê a mim vê o Pai; e como dizes tu: Mostra-nos o Pai?
Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo de mim mesmo, mas o Pai, que está em mim, é quem faz as obras.
Crede-me que estou no Pai, e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras”.
João, 14:7-11
Esta é uma intrigante passagem no Novo Testamento, especificamente no Evangelho Segundo João. Aqui, narra-se um breve diálogo que Jesus trava com seus apóstolos, notadamente o Ap. Filipe. Antes de imergirmos no texto, é crucial que tenhamos uma ideia clara do contexto imediato.
Jesus já fizera inúmeros milagres (no Evangelho de João, especificamente, estão relatados 7 com a ressurreição, mas fala-se que “Jesus fizera muitos outros sinais”, os quais não estão descritos no livro. Cf. Jo. 20:30); mas ressalta-nos aos olhos o fato de que os milagres não eram um imperativo à crença dos discípulos. Isto está claro em todos os evangelhos, quando Jesus reclama da incredulidade e dureza de coração dos discípulos (Ex.: Mc 16:14-16), mesmo após terem testemunhado inúmeros e extraordinários milagres.
O mesmo se dá em João, que nos mostra Filipe arguindo a Cristo com uma petição que, a olhos destreinados, pareceria “justa” e “tremendamente espiritual”.
Observe que Filipe requereu de Jesus, após uma declaração deste de que era “o Caminho, a Verdade e a Vida”, que se lhe mostrasse “o Pai… o que ´lhe bastaria´”. Este tipo de colocação nos remete àquilo que, possivelmente, estaria na cabeça dos demais apóstolos e que, certamente, estava na mente de Filipe.
Imagine a cena: Jesus e os discípulos conversando tranquila, mas decisivamente sobre alguns pontos essenciais da própria natureza do Messias; conversa na qual Jesus revelava que era “Verdade e a própria Vida” em si, e, em seguida, é interpelado por uma petição de um de seus discípulos, que requer-lhe uma revelação que, ao que tudo indica, servir-lhes-ia de corroboração inequívoca de que Jesus era quem dizia ser e que, desta forma, sua missão estaria autenticada indiscutivelmente.
Pode-se pensar, a princípio, que os demais discípulos ao ouvirem a petição de Filipe (que fala por todos, observe), caso o diálogo tivesse terminado ali, soaria talvez como algo “espiritual”, “profundo”, digno de uma argúcia e tenacidade espirituais invejáveis! Tal qual o pedido de Eliseu, de “ter a porção dobrada do Espírito que habitava em Elias, o profeta” – e que lhe foi concedido mediante seu testemunho acerca da forma como Elias deixou esse mundo, isto é, subindo num redemoinho até às nuvens -, o pedido de Filipe parece ter uma coerência similar, quase como um “ato de fé”, algo absolutamente necessário para que o que Jesus estava dizendo fosse endossado, assimilado, praticado e repassado a outros.
A resposta de Jesus, contudo, revela uma face espiritual ainda não trabalhada dos apóstolos, mas não menos importante do que qualquer reconhecimento que viesse a ser-lhes atribuído.
É claro que, ante uma petição daquela magnitude, vários (se não todos) dos que ali estavam, voltaram-se seus olhos para Jesus, talvez, em sua maioria, na esperança de que Ele majestosa e miraculosamente “lhes mostrasse o Pai”. Creio que os eventos ocorridos na chamada “transfiguração” de Jesus (cf. Mc. 9:2, Lc. 9:29 e Mt. 17:2), curiosamente só relatada nos Evangelhos Sinóticos (Mateus, Marcos e Lucas), já eram bem conhecidos à época dos fatos narrados no capítulo 14 do Evangelho de João.
Como no momento da transfiguração estavam presentes apenas Tiago, Pedro, João, os rumores sobre aquele evento extraordinário devem ter se espalhado gerando todo o tipo de especulações sobre a pessoa e a natureza do próprio Cristo. Talvez fosse a algo similar que Filipe se referisse, ao pedir a Jesus que se lhes mostrasse o Pai. Mas é certo que ele queria experimentar algo “novo” e, repito, sua forma de falar faz-nos crer que este era o sentimento dos demais discípulos, talvez mais intensamente dos demais que não testemunharam os eventos da transfiguração de Jesus.
O que Filipe queria com aquela petição? A reposta de Jesus, direta e aparentemente concentrada em quem lhe fizera o pedido, pode ser um indicativo de que não era mero exibicionismo de Filipe, mas uma necessidade sincera. Mesmo assim, vê-se uma casualidade que nos revela uma enorme infantilidade espiritual, o que nos é exposto pela resposta de Cristo. Mas, pense por um momento se aquela resposta não tivesse sido dada de imediato.
Se Filipe e os demais discípulos pensassem que “bastaria que Jesus mostrasse-lhes o Pai” e isso “já seria suficiente” para corroborar todo o ensino e o ministério de Jesus! Aquela dissociação que, inconscientemente, Filipe fazia entre o Filho e o Pai, como que de substâncias distintas, seria, posteriormente, pródiga em confusões e discórdias nas diversas ramificações da Igreja, séculos adiante.
Mas, não podemos deixar de reconhecer o fato de que a dúvida quanto à substância divina do Filho e do Pai era algo que já se impunha ainda no período apostólico. É-nos de máxima importância reconhecer claramente as bases teológicas da resposta do Mestre a Filipe.
Jesus, como era do costume e prática rabínicas do século I, responde com perguntas retóricas. A função da pergunta retórica não era apenas ensinar, afirmando-se o que se perguntava, mas evidenciar o óbvio.
Bem, seguindo esse raciocínio, àquela altura deveria ser óbvio aos discípulos saber que, em sentido figurado, quem visse Jesus via também o Pai. Esta junção intrínseca, indissociável, indissolúvel, perene e, pelas próprias características da Divindade, eterna também, era algo que fora evidenciado aos discípulos (aqueles que acompanharam Jesus de perto, desde o início de seu ministério terreno).
Assim, não se trata apenas de um mero “deslize” do apóstolo Filipe, mas da falta de percepção do “óbvio”, do que, àquela altura, deveria ser perfeitamente compreensível para o apóstolo. Esse estado de falta de percepção espiritual é ratificado pelo fato de, no texto, Jesus fazer não uma, mas duas perguntas retóricas a Filipe, como se houvesse uma vontade por parte de Jesus (o que nos é legado no escrito de João) de destacar o reprovável nível de não percepção de algo “óbvio”, uma vez que o apóstolo fora uma testemunha ocular próxima de Jesus desde o início do seu ministério.
O apelo que Cristo faz, posteriormente, chamando o apóstolo à razão (ou à crença, num sentido mais estrito), fecha a ideia deste texto. Jesus apela à crença do apóstolo ao menos por causa das “obras” que fazia; aqui, uma clara alusão aos milagres, os quais João costuma chamar de “sinais” (semeion, no grego).
Os “sinais” no Evangelho de João eram uma prova praticamente indubitável da presença da divindade em Jesus, uma vez que a forma como são descritos devem ser encaixados à luz do prólogo joanino, o excepcional começo do Evangelho de João que magistralmente norteia o leitor quanto ao objetivo principal da obra: revelar que Jesus é o Logos divino, a Palavra de Deus encarnada, sendo, portanto, tão divina quanto é o Pai, tão indissociável do Pai quanto a palavra de um homem é indissociável deste mesmo homem.
Mostrando-nos um Jesus que defendia claramente sua própria divindade, João nos apresenta, através deste pequeno diálogo entre Jesus e Filipe, a ideia de que, ao fim do ministério de Cristo aqui na terra, deveria ser notório aos apóstolos o fato de que Jesus, o Cristo (Messias) não era meramente humano, mas divino, o que ser-nos-ia ilustrado por sua defesa de que “o Pai estava nele e ele no Pai”, assim como a palavra de alguém denota quem o indivíduo que a proferiu é, ao mesmo tempo que leva adiante, por onde for, de certa forma, a pessoa que a proferiu.
Não entender esse princípio espiritual é algo curioso, que nos mostra o nível de limitação à que estava submetido o colégio apostólico, revelando-nos, talvez, um prelúdio do que viria a, de certa forma , caracterizar boa parte da Igreja nos tempos futuros: nela há líderes sinceros, comprometidos com Cristo e com a sua obra, bem intencionados até, mas com uma percepção espiritual tão parca que, um deslize epistemológico acerca do que deveria estar alicerçado como preceito de fé pode ser a porta de uma nova apostasia… e pior: se não denunciada e corrigida no devido tempo, talvez com o poder de espalhar-se como gangrena entre mentes desavisadas, ainda que pias.
Foi esta falta de compreensão das próprias palavras de Jesus que levaram ao reducionismo, ao subordinacionismo, ao arianismo, enfim, às primeiras e célebres controvérsias cristológicas. Quase todas surgiram nos primórdios da era Cristã, através de homens em sua grande maioria pios, devotos, até líderes proeminentes da Igreja, mas que infelizmente foram também autores de cismas, de heresias devastadoras e que não faziam jus ao seus legados ético-morais cristãos.
A palavra de Filipe aos demais apóstolos pode ter parecido absolutamente razoável, coerente e eles podem ter ficado esperando uma resposta categórica de Jesus, embora, penso eu, não tivessem a mínima ideia do que seria. É exatamente a falta desse conhecimento do que é (ou deveria ser) notoriamente “óbvio”, de um princípio óbvio, que provoca uma reação realmente de “espanto”, de estupefação, pois, lembro, a falta de percepção vinha de um líder da Igreja, alguém que não apenas ouvira Cristo, mas que presenciara milagres genuínos.
A quem Filipe representa? Não sei, ao certo, mas penso que ele representa (hipoteticamente, claro) muitos cristãos que podem até pensar terem um discernimento espiritual elevado, chegando mesmo à conclusão de que sua oração a Deus “deve” ser prontamente atendida, pois estariam pedindo algo que “impressionará” a Deus, assim como o pedido de Eliseu impressionou o profeta Elias. Este tipo de analogia descuidada só revela algo que tem se tornado absurdamente endêmico no mundo atual; a completa falta de percepção das coisas… e quando falo “coisas”, refiro-me, inclusive, àquilo que deveria ser óbvio, mesmo em termos teológicos.
Hoje, como tolos, deixamos de enxergar o óbvio. A consequência disto pode ser descrita através de um número infinito de maneiras; mas, para nosso propósito aqui, basta-nos uma: “Não fales ao ouvido do tolo, porque desprezará a sabedoria das tuas palavras”. Pv. 23:9. O tolo que continuar tolo será, por fim, desprezado e pode não ter a chance de pensar sobre sua tolice e inabilidade de raciocinar biblicamente – como, talvez, Filipe tenha pensado de si mesmo, ao fazer aquele pedido tolo a Jesus -, ouvindo uma exortação do próprio Deus através de pacientes e corretivas perguntas retóricas.
Sabe-se que Filipe, como os demais apóstolos, foram gigantes na fé. Seus legados espirituais, através da ação do Espírito Santo em suas vidas, é inegável. Mas, tais exemplos estão na Bíblia para, enfim, aprendermos inclusive com os erros e limitações dos homens de Deus, que são os erros e limitações de todos nós.