devocional

Como vinho

Quando este homem se refizer, incorruptível, surgirá como aquele vinho das bodas, no fim da festa, recebido inquestionavelmente melhor do que todos os outros.

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Barris de vinho. (Foto: ArtTower por Pixabay)

Há pessoas que são como vinho, ou seja, ficam melhores no passar dos anos. Não são todos os vinhos que ficam melhores, mas alguns específicos. Daí o seu processo de fermentação, armazenagem, engarrafamento etc.

Todavia, este texto não é para falar de vinhos, mas de pessoas. O vinho, aqui, é uma figura de analogia, como poderiam ser árvores, concreto, etc. O passar do tempo é um fenômeno para nós, seres finitos, peculiar e ao mesmo tempo extraordinário. Nos transforma a todos. Não da mesma forma, é verdade, mas inelutavelmente a todos. Ainda voltarei a falar algo do vinho neste texto.

Com melhores, não quis dizer que os que se tornam em si mesmas e por si mesmas. Há muitos fatores que nos fazem, seres humanos, melhores com o tempo. Um deles é a sabedoria. Poderia elencar outros fatores, como graça, paciência, prudência. Mas penso que, como porções de um mesmo fruto, estamos falando de aspectos interligados e, ao mesmo tempo, totalmente diferentes. Neste caso, concentro-me na sabedoria. A sabedoria emprestou seu nome (e essência) para alguns livros da Bíblia, que são chamados “Livros de Sabedoria”. A sabedoria foi, inclusive, enaltecida nestes livros. E, dentre os “Livros de Sabedoria”, podemos destacar três, os quais diz a tradição que foram escritos pelo mesmo homem: Cantares, Provérbios e Eclesiastes, pelas mãos do rei Salomão.

Quem conhece a história de Salomão pode pensar que ele é justamente um dos exemplos daqueles que não ficam melhores com o tempo. Salomão começou muito, muito bem o seu reinado. Dizem-nos os livros de 1 Reis e 1 Crônicas que Salomão iniciou seu reinado tendo extraordinárias experiências com Deus, principalmente a partir de sua construção mais significativa: o templo dos judeus. 1 Rs. 4-6 exemplificam bem o que acabei de dizer.

Porém, também nos diz a Bíblia que Salomão, após muitos casamentos, deixou-se corromper pelas mulheres que amou, construindo templos aos seus deuses (muitas das esposas de Salomão eram gentias, ou seja, não-judias). Por fim, Salomão incorre em trapaças com seus parceiros históricos, volta-se contra o povo, cobrando-lhe pesados impostos e torna-se idólatra. Salomão parece ter se arrependido e Deus o conserva no trono até sua morte, aproximadamente no ano de 932 a.C., ano a partir do qual a monarquia se dividiria em Israel, existindo dois reinos, às vezes com intermináveis guerras sangrentas entre os mesmos. Tudo legado do declínio de Salomão.

E por que falar em Salomão, então? Porque o que me interessa aqui não é a vida do rei, mas três de seus escritos, que ilustram bem, penso eu, o princípio de que alguns de nós melhoram com o tempo; e um dos fatores de tal fenômeno é a Sabedoria. Dizem que Salomão escreveu “Cantares” quando era um jovem rei. Não sabemos exatamente se foi assim, mas o Livro de Cantares é de uma leveza desconcertante, quase inexperiente. As palavras saltam os olhos como uma gazela salta o campo: com a singeleza da verdadeira graça. Não há em Cantares a dor ou consciência a culpa, apenas o canto do namoro do “esposo” e da “esposa”. Dizem os intérpretes que o rei era ele mesmo o “esposo”, e a “esposa” uma alusão à rainha de Sabá, cujas tradições etíopes antigas afirmam ter sido consorte do rei. Cantares é leve, inspirador, gracioso e reconstrói com os paralelismos e analogias hebraicas a alma de um jovem.

Tomara fosses como meu irmão, que mamou os seios de minha mãe! Quando te encontrasse na rua, beijar-te-ia, e não me desprezariam! Levar-te-ia e te introduziria na casa de minha mãe, e tu me ensinarias; eu te daria a beber vinho aromático e mosto das minhas romãs. A sua mão esquerda estaria debaixo da minha cabeça, e a sua direita me abraçaria. Conjuro-vos, ó filhas de Jerusalém, que não acordeis, nem desperteis o amor, até que este o queira”, Cantares 8:1-4. Que melhor texto para representar o desprendimento da juventude, ávida por conhecer os encantos do amor?

O Livro de Provérbios, segundo os mesmos intérpretes, é um livro da maturidade de Salomão. Enaltece a Sabedoria, dando-lhe voz. A Sabedoria aparece como serva e maior instrumento de Deus, numa linda tentativa de se transmitir, em poesia, que dois conceitos profundos, apesar de indissociáveis (Deus e a Sabedoria) não poderiam soar como sempiternos, pois questões como esta poderiam surgir: Seria Deus um ´servo´ da Sabedoria? Ora, sabemos que a palavra “servo”, aqui, é usada em sentido absolutamente figurado, mas, se a Sabedoria fosse ainda maior do que Deus, dar-se-ia de podemos pensar em conceitos maiores do que o próprio Deus, mais abrangentes, ainda que abstratos.

Portanto, não é a Sabedoria quem chama a Deus, mas Deus que lhe convoca, que lhe dá ordens, que a molda, e que a transforma em um padrão para todos os seres viventes conscientes, numa tentativa latente no livro de se expor a importância do Saber – o livro é inteiro um ode à Sabedoria -, ante a magnificência da majestade divina.

Meu é o conselho e a verdadeira sabedoria, eu sou o Entendimento, minha é a fortaleza. Por meu intermédio, reinam os reis, e os príncipes decretam justiça. Por meu intermédio, governam os príncipes, os nobres e todos os juízes da terra. Eu amo os que me amam; os que me procuram me acham. Riquezas e honra estão comigo, bens duráveis e justiça. (…) O SENHOR me possuía no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Desde a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do começo da terra. Antes de haver abismos, eu nasci, e antes ainda de haver fontes carregadas de águas. Antes que os montes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci”, Provérbios 8:14-18; 22-25. Que melhor texto para expressar, simultaneamente, o esplendor da Sabedoria e sua condição de filha do Criador?

Por fim, o Eclesiastes. Lembra daqueles intérpretes sobre os quais falei? Pois é, eles também afirmam que o Livro do Eclesiastes é da época tardia de Salomão, de sua velhice. É um livro sem “encantos”. Pelo contrário, ali vemos um “desencanto” frio, impassível, mas real, como a inevitabilidade da passagem do tempo. O romantismo que sobeja em Cantares, é-nos árido em Eclesiastes. As sentenças são mais cadenciadas, a estrutura paralelística se entrelaça, ultrapassando e muito apenas o que viriam a ser reconhecidos como versículos.

Blocos de texto inteiros parecem sobrepujar-se, o que nos leva à seguinte conclusão esquemática do livro: os blocos de texto que se revezam, mostram o conflito entre uma tese (“Tudo é vaidade”), uma antítese (“Viver e aproveitar do fruto de seu trabalho”), culminando com uma síntese (“Não rejeitar nada que o coração pedir… sabendo, porém, que de tudo Deus nos pedirá conta”). É como se o (talvez) velho Salomão, ao fim de sua vida, descobrisse e quisesse transmitir a todos nós que verdadeiro sentido da vida só pode ser realmente descoberto após esta, ou seja, na morte, que paradoxalmente não é um fim, mas um início.

Lembra-te do teu Criador nos dias da tua mocidade, antes que venham os maus dias, e cheguem os anos dos quais dirás: Não tenho neles prazer. (…) antes que se rompa o fio de prata, e se despedace o copo de ouro, e se quebre o cântaro junto à fonte, e se desfaça a roda junto ao poço, e o pó volte à terra, como o era, e o espírito volte a Deus, que o deu. Vaidade de vaidade, diz o Pregador, tudo é vaidade”, Eclesiastes 12:1; 6-8, onde fica claro o dilema da vida: e um dilema tem esse nome justamente porque há duas forças operando contrárias, tese e antítese, convergindo para uma síntese, que não é aqui, pois aqui, “tudo é vaidade”.

Talvez um leitor mais atento esteja se perguntando, agora: E o vinho? O vinho, figura análoga que usei no início do texto para exemplificar uma tese popular, a de que muitos de nós melhoramos com o tempo, especificamente por causa da Sabedoria, toma sua forma final a partir do todo desta brevíssima análise, pois o Homem é, naturalmente, a leveza do Cantares, o reconhecimento da Sabedoria de Provérbios, e o desencanto final deste mundo em Eclesiastes.

E este Homem não é o padrão natural, caído, adâmico, mas o espiritual, o que toma consciência plena dos estágios da vida na finitude do tempo, precisamente quando o tempo não mais existir para si, ou seja, quando for para a Eternidade. Quando este Homem se refizer, incorruptível, surgirá como aquele vinho das bodas, no fim da festa, recebido inquestionavelmente melhor do que todos os outros. E tudo isso como parte do plano da Sabedoria divina.

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