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Um Doutor da Graça não tão soberano assim

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Agostinho foi o grande herói de Calvino. Em suas Institutas da Religião Cristã, o teólogo francês cita o bispo de Hipona cerca de quatrocentas vezes. Não é atoa que o pensamento soteriológico calvinista está radicado no agostinianismo. Da relação entre as reflexões desses vultos da teologia cristã, um ar de superioridade teológica é dado à soteriologia agostiniana-calvinista. Visto que Agostinho é saudado como “Doutor da Graça”, parece mesmo que sua teologia é soberana.

Quando recorremos a uma leitura sobre o pensamento cristão antigo, notamos que a teologia agostiniana não teve vida fácil e que foi razão de extensas controvérsias. Por exemplo, a teologia de Agostinho sobre a graça e a predestinação causou uma agitação grande em seu tempo. Debrucemo-nos um pouco sobre ambas.

No tocante a graça, Agostinho estava certo quando dizia ser necessário que ela precedesse a vontade humana no sentido de que o perdido se tornasse um redimido. O primeiro passo da fé (initium fidei) nunca é humano, e sim de Deus. Porém, ao dizer que esta graça é concedida aos predestinados desde a eternidade, Agostinho se distanciava dos pais pré e pós-nicênicos. Esse passo atrás é importante para demonstrar que homens piedosos e de mentes brilhantes, anteriores a Agostinho, não criam na predestinação de alguns, no número fixo de eleitos, mas admitiam uma salvação disponível a todos que viessem crer (expiação ilimitada), nem tampouco criam na graça irresistível.

Por exemplo: Clemente Romano, nome do primeiro século e, segundo a tradição, batizado pelo apóstolo Pedro, escreveu: “Percorramos todas as gerações e aprendamos que de geração em geração o Senhor deu possibilidade de conversão àqueles que a ele quiseram retornar.” Associemos a Clemente, Justino Mártir (c. 100-c. 165), Irineu de Lion (c. 125-c. 202), Atanásio (c. 295-c. 373). Nenhum desses patrísticos admitia a predestinação incondicional agostiniana.

Quanto a graça irresistível, Agostinho dizia que ela não violentava a vontade humana, mas apenas executava uma “violência suave”. Isso soa um eufemismo. Nos pais apostólicos não encontramos graça irresistível, mas graça resistível. A Epístola de Diogneto diz: “Deus o enviou, e o enviou como homem para os homens; enviou-o para nos salvar, para persuadir, e não para violentar, pois em Deus não há violência […].” Aqui ecoa Zacarias 4:6: “Não por força nem por violência, mas pelo meu Espírito, diz o Senhor dos Exércitos.” A graça tenta persuadir e, como escreveu Clemente Romano, “àqueles que a ele (Deus) quiseram retornar” serão salvos.

Resumindo, Agostinho, com seus ensinos sobre graça e predestinação, não encontra repouso nos primeiros pais. Talvez, seja por isso que um de seus críticos contemporâneo, Vincent de Lérins, tenha chamado Agostinho e seus discípulos de “inovadores anônimos”. Vincent teria dito ainda, acerca de seu propósito em refutar Agostinho, o seguinte: “descrever aquelas coisas que foram legadas a nós por nossos ancestrais e deixadas conosco, e fazê-lo com fidelidade de um narrador, e não com a presunção de um autor.”[1]

Contrapondo-se às doutrinas da graça e da predestinação de Agostinho, irromperam em seu tempo, teólogos do núcleo denominado semipelagianos. Tais teólogos não eram admiradores das doutrinas do teólogo e professor britânico Pelágio (360-420), mas admiradores e simpatizantes de Agostinho. Por isso, o historiador Justo L. Gonzalez achar impróprio o termo e propor outro – semiagostinianos –, pois, para ele,  as coisas assim estariam  justificadas. Esses semiagostinianos não estavam interessados em seguir a teologia agostiniana “até as últimas consequências.”[2] Dentre esse núcleo – agora devidamente denominado – aparece João Cassiano, monge marselhês, e, de acordo com J.N.D. Kelly, foi o mais capaz pensador de sua escola. Refutando Pelágio com sua antropologia otimista que negava a perda do livre-arbítrio humano pós queda edênica, e fugindo do extremismo de Agostinho, Cassiano negava estar morta a vontade humana, porém, era necessária a graça (não irresistível) para restaurá-la e ajudá-la. No tocante a predestinação, ele se opunha à incondicional para defender a condicional baseada na antevisão divina da qualidade do comportamento do homem.[3] A importância de Cassiano como teólogo é destacada por Gonzalez quando diz que ele foi lido e seguido durante a Idade Média.

Antes de chegarmos ao Sínodo de Orange (529 d.C.), acontecimento evocado por alguns para afirmar que o semiagostinianismo foi considerado herege e que o agostinianismo prevaleceu soberanamente, é preciso, seguindo Gonzalez, fazer menção a Próspero de Aquitânea, discípulo do bispo de Hipona. Próspero fora um ferrenho combatente contra o semiagostinianismo. No entanto, até ele evitou o radicalismo de seu mestre e, de acordo com  M. Cappuyns, citado por Gonzalez, Próspero “abandona a vontade restritiva de Deus e a predestinação para o inferno antes do pré-conhecimento da culpa.”[4]

No Concílio de Orange, grosso modo, a doutrina agostiniana prevaleceu. Porém, “sua crença na irresistibilidade da graça e sua interpretação restrita da predestinação, foram tacitamente (ênfase minha) deixadas de lado.”[5] Nada é dito sobre essas doutrinas de Agostinho. Orange sepultou, pelo seu veredito, o pelagianismo e o semiagostinianismo, porém, passou longe de chancelar doutrinas caras ao agostinianismo. Há um vasto número de teólogos que se opuseram a um ou outro aspecto do ensino agostiniano sobre graça e predestinação, nos informa Gonzalez.

Embora Agostinho tenha exercido uma poderosa influência no Ocidente, isso não significa que seus pensamentos sobre graça irresistível e predestinação, reinaram absolutos. Há uma tradição piedosa e de respeito, anterior a ele, que propõe compreensões distintas das dele. Em seu tempo, até Próspero de Aquitânia capitulou diante de um pensamento menos extremista como o de seu mestre. Apesar da grandiosidade de Agostinho, sua doutrina da salvação não fora soberana nos períodos tratados nesse breve texto.

E o que dizer quanto ao período da Reforma Protestante e entre os reformadores? Aqui não houve um reinado absoluto. E nos dias atuais? Também não há.

Não estou em busca de unanimidade. Não me atreveria a provocar Nelson Rodrigues e seu pensamento de que toda unanimidade é burra. Mas, quero apontar do ponto de vista histórico que os ensinos de Agostinho quanto à graça e a predestinação não são tão autoritativos como alguns desejam apresentá-los. M. Cappuyns escreveu: “pode-se dizer que em nenhum ponto da sua história… a igreja adotou a totalidade da doutrina do Doutor da Graça.”[6] Nesse sentido, há muita (não todas) discordância de Agostinho que é ortodoxa, portanto, legítima e válida. Exemplo: o arminianismo clássico com suas elevadas doutrinas da graça e da predestinação por presciência fundadas no apóstolo Paulo e nos pais gregos.

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[1] GONZALEZ, Justo L. Uma História do Pensamento Cristão. Vol. 2. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p.58.

[2] GONZALEZ, Justo L. Op. cit., p. 56.

[3] Id.

[4] In: Gonzales, Justo L. Op. cit., p. 60.

[5] KELLY, J.N.D. Patrística: Origem e desenvolvimento das doutrinas centrais da fé cristã. São Paulo: Vida Nova, 1994, p. 281.

[6] In: Gonzales, Justo L. Op. cit., p. 60.

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