opinião
Extensão da expiação: uma defesa informal do universalismo qualificado
Estudo bíblico sobre a extensão da expiação e o universalismo qualificado.
Por quem Jesus Cristo morreu? Foi por todos os indivíduos que constituem a humanidade ou apenas pelos eleitos? Entre os evangélicos, o alcance da obra salvífica de Cristo é razão de controvérsia. São dois os grupos que se polarizam: primeiro, os particularistas (calvinistas), defensores da expiação limitada, que advogam ter morrido Jesus apenas em favor dos eleitos por Deus. Segundo, temos a doutrina que afirma ter Cristo morrido pelo mundo (Jo 3:16), isto é, por todas as pessoas. Nesse sentido, estamos diante do universalismo qualificado [1] (expiação ilimitada). Defendem-no, os arminianos, adeptos das doutrinas ensinadas pelo teólogo reformado Jacó Armínio[2] e que foram condensadas e apresentadas pela Remonstrância [3] e os wesleyanos. A respeito de John Wesley e a questão em foco, Kenneth Collins diz:
Para Wesley, a obra redentora de Cristo representa o fundamento universal sobre o qual o perdão dos pecados é oferecido a todos [4].
Entre as denominações que creem na expiação ilimitada estão Batistas Gerais (denominados assim devido à crença no universalismo qualificado), Metodistas, Metodistas Wesleyanos, Hollines, Igreja do Nazareno, Assembleias de Deus e outras denominações Pentecostais.
Os particularistas argumentam que os desígnios divinos não podem ser obliterados pelas decisões humanas. Caso tivesse Deus planeado um esquema soteriológico que pretendesse salvar todos os homens, isso teria que ser cumprido. Nessa direção, não nego o que dissera Jó: “bem sei que tudo podes, e nenhum dos teus planos pode ser frustrado” (Jó 42:2). Porém, recuso-me a fazer vistas grossas para o fato bíblico de que está inclusa no escopo soteriológico neotestamentário a autonomia do livre-arbítrio humano frente à manifestação da graça preveniente[5] que não dobra a vontade humana, mas coopera com o homem dando-lhe condições de resistir ou não, finalmente, ao Espírito Santo.
Atos 7:51 é uma Escritura que comprova a não irresistibilidade ao Espírito: “homens de dura cerviz e incircuncisos de coração e de ouvidos, vós sempre resistis ao Espírito Santo; assim como fizeram vossos pais, também vós o fazeis.” Ora, como puderam os interlocutores de Estevão resistir ao Espírito Santo? Como eles foram capazes de, como diz Vine (et al.), “esforçar[em]-se contra”[6] o Espírito? Livre-arbítrio[7] (liberdade libertária) é a resposta.
A capacidade humana de resistir ao Espírito fora defendida por Armínio. Ele negou a irresistibilidade da graça nos seguintes termos:
A graça de Deus é uma certa força irresistível? Isto é, a controvérsia não diz respeito àquelas ações ou operações que possam ser atribuídas à graça, (pois eu reconheço e ensino muitas destas ações ou operações quanto qualquer um,) mas ela diz respeito unicamente ao modo de operação, se ela é irresistível ou não. A respeito da qual, creio, de acordo com as escrituras, que muitas pessoas resistem ao Espírito Santo e rejeitam a graça que é oferecida (ênfase minha).[8]
Faz parte do escopo soteriológico bíblico a resistência humana à graça divina, pois as pessoas foram dotadas por Deus de vontade e Ele não salva à revelia da volição humana. É do encontro entre a graça preveniente (esta não dobra a vontade humana) e o assentimento humano (exercício do livre-arbítrio) que os benefícios da expiação de Cristo podem ser aplicados na vida de uma pessoa. Caso alguém rejeite as convicções do Espírito Santo, nenhum plano divino é frustrado, pois, Ele mesmo, em sua Soberania, decidiu ser possível ao homem resisti-lo (Jo 5:40).
O direito de livre-arbítrio permanece. Esta é a razão óbvia de nem todos serem salvos. Concordo com o princípio exarado pelos particularistas que os desígnios divinos são eficazes e não podem ser malogrados pelas ações humanas. No entanto, esta verdade não comprova a doutrina da expiação limitada nem ensina ter Jesus Cristo morrido apenas pelos eleitos.
Adotar como pressuposto o universalismo qualificado não conduz ao universalismo real como alguns sugerem. Torna-se condição sine qua non atentar para o fato que a expiação de Cristo cria duas situações. A primeira diz respeito à disponibilização da salvação para toda humanidade: “[…] Cristo Jesus, homem, o qual a si mesmo se deu em resgate por todos” (1ª Tm 2:5-6). A segunda tem a ver com a conquista da salvação para quem, pela fé, crê no sacrifício do Senhor: “Quem crê nele não é condenado; mas quem não crê já está condenado” (Jo 3:18).
Noutras palavras, a expiação não é automática. A aplicação desta obra de Cristo na vida do homem depende da decisão deste, sob a influência da graça preveniente, crer ou não. Desse modo, o universalismo real não é a conclusão lógica.
Referências como Jo 1:29, 3;16, 6:33; Rm 11:12, 15 e 1Jo 2:2 mostram que a morte de Jesus é por todo o mundo. O uso deste vocábulo nestas referências (entre outras) não deixa dúvida de que estão em foco todas as pessoas que constituem a raça humana. Vejamos o caso de 1Jo 2:2 que diz: “Ele [Jesus] é a propiciação pelos nosso pecados, e não somente pelos nossos próprios, mas ainda pelos do mundo inteiro.”
Segundo James Strong [9] estamos diante de uma metonímia, e como tal refere-se aos “habitantes da terra, os homens, a humanidade.” Vine (et al.) também toma esta passagem como uma metonímia. Toda tentativa de impor limites a essa referência não passa de um construto teológico equivocado. A expiação de Cristo é apresentada como sendo potencialmente universal.
Os críticos da expiação ilimitada levantam uma nuvem de fumaça quanto à questão do significado de mundo nessa passagem. Ora, é sabido que esse vocábulo tem sentidos variegados na Bíblia. No entanto, embora mundo (kosmos) possa significar também, por exemplo, o sistema maligno sob o domínio do diabo, o fato é que em nenhum lugar do Novo Testamento esta palavra é usada como sinônimo para eleitos como advogam os particularistas. Por exemplo: eles dizem ser um pressuposto infundado entender mundo em 1Jo 2:2 como indicando todas as pessoas que constituem a raça humana. Para efeitos didáticos, reflitamos a presença de mundo nesta Escritura.
A meu ver, é totalmente improcedente concluir qualquer outra coisa que não signifique ser mundo uma referência a todos os indivíduos da raça humana. Ela é nitidamente inclusiva e não exclusiva. A simples leitura dela por parte de qualquer pessoa alfabetizada a levará a essa conclusão. Observando a particularização joanina ao usar as expressões “nossos” e “nossos próprios”, o leitor, ao defrontar-se com a frase “mas ainda pelos do mundo inteiro”, não terá dúvidas em pensar em todos os ímpios nesse caso visto ser João um crente incluso na sentença “nosso próprios”.
Ou seja, João faz distinção entre a e b e conclui dizendo que o alcance da morte de Cristo é em favor de todo o “mundo” (crentes e descrentes). A meu ver, esta escritura faz parte daquele conjunto de passagens básicas que transmitem mensagens bíblicas elementares. Refiro-me a Perspicuidade (clareza) das Escrituras. Os reformadores do século XVI diziam que as Escrituras são claras quanto a sua mensagem básica e pessoas leigas podem entendê-la tranquilamente. Ora, a mensagem da cruz é clara.
Penso valer a pena citar o que dizem alguns comentaristas sobre essa Escritura.
Earl Radmacher (et al.):
A morte de Cristo é suficiente para todos, mas só é eficiente para os que creem nele. Nem todos serão salvos, mas Jesus oferece salvação a todos [10].
Leon Morris:
Cristo fez ampla provisão; a sua provisão tem eficácia para os pecados do mundo inteiro (ênfase no original) [11].
Adam Clarke:
[…] em favor de ‘toda a humanidade’; e a tentativa de limitar isso é um ultraje violento contra Deus e sua Palavra [12].
A. T. Robertson:
A propiciação operada por Cristo provê salvação para todos (ver Hb 2:9), contanto que se reconciliem com Deus (ver 2Co 5:19-21) [13].
John Albert Bengel:
A propiciação é tão grande quanto o pecado [14].
Consultei os léxicos de James Strong, W. E. Vine (et al.) e F. Wilbur Gingrich e nenhum deles apresenta kosmos (mundo) como aparecendo no Novo Testamento com o sentido de eleitos. Gingrich, por exemplo, aponta os seguintes sentidos para “mundo” no Novo Testamento:
a) O mundo em seu sentido mais inclusivo, o universo, cosmos (Mt 25:23; Jo 17:5; At 17:24; Rm 1:20; 1Co 8:4; Fp 2:15; Hb 4:3).
b) O mundo como a terra, o planeta em que vivemos (Mt 4:8; Mc 14:9; Lc 12:30; Jo 10:36, 11:9, 27, 16:21, 28, 18:36; 1Tm 6:7; 1Pe 5:9; Ap 11:15).
c) O mundo como a humanidade em geral (Mt 18:7; Jo 1:29, 3:16, 4:42, 6:33, 51, 8:12, 12:19, 17:6, 18:20; Rm 3:6, 19; 1 Co 4:13; 2Pe 2:5).
d) O mundo como o cenário das posses, alegrias, sofrimentos terrenos, etc. (Mt 16:26; Mc 8:36; Lc 9:25; 1Co 7:31, 33; 1Jo 2:15, 3:17).
e) O mundo é descrito algumas vezes como sendo hostil a Deus, perdido no pecado, arruinado, depravado (Jo 7:7, 8:23, 12:31, 15:18, 16:33, 17:25, 18:36; 1Co 2:12, 3:19, 11:32; 2Co 5:19; Gl 6:14; Tg 1:27; 1Jo 4:17, 5:4).
f) O mundo como totalidade, a soma total (Tg 3:6). [15]
O fato é que a interpretação de mundo como sinônimo de eleitos é arbitrária.
Acrescente-se à óbvia conclusão dos comentaristas e exegetas acima o fato de João falar a mesma linguagem de Paulo e Pedro quanto ao universalismo qualificado. O primeiro disse: “o qual deseja que todos os homens sejam salvos” (1Tm 2:4), e o segundo, “não retarda o Senhor a sua promessa […] querendo que nenhum pereça, senão que todos cheguem ao arrependimento” (2Pe 3:9).
De acordo com Norman Geisler[16] Calvino diz o seguinte sobre Marcos 14:24 concordando com a expiação ilimitada:
Marcos 14:24 [diz]: “isto é o meu sangue”. Eu já alertei, quando se diz que o sangue foi derramado (como em Mateus) pela remissão dos pecados, como nestas palavras, somos direcionados ao sacrifício da morte de Cristo, e negligenciar este pensamento torna impossível qualquer celebração apropriada da ceia. De nenhuma outra forma as almas fiéis poderão ser satisfeitas, se não crerem que Deus é satisfeito deste modo.
A palavra muitos não significa somente uma parte do mundo, mas a totalidade da raça humana; ele contrasta “muitos” com “um” como se estivesse dizendo que ele não seria o Redentor de um homem, mas acharia a morte a fim de libertar muitos da sua maldita culpa. É incontestável que Cristo veio para a expiação dos pecados da humanidade como um todo.
A Escritura e o comentário imediatamente acima consubstanciam-se às demais referências bíblicas anteriormente indicadas levando-nos à crença incontestável do universalismo qualificado. Até Charles Hodge, expoente defensor do calvinismo nos Estados Unidos no século XIX também se rende a universalidade da expiação de Cristo. Ele escreveu: “Ele morreu por todos (ênfase minha)… para que Ele pudesse lançar as bases para a oferta de perdão e reconciliação com Deus, sob a condição da fé e o arrependimento”[17]. O amor de Deus é lato ao ponto de envolver a todos. Por isso se diz: “E eu, quando for levantado da terra, atrairei todos a mim mesmo” (Jo 3:16).
Armínio, defensor da doutrina bíblica da expiação ilimitada, escreveu:
Em relação à extensão e potencialidade do preço e em relação à única causa [geral] da humanidade, o sangue de Cristo é a redenção de todo o mundo. Mas aqueles que passam por esta vida sem fé em Cristo, sem o sacramento da regeneração, são totalmente estranhos à redenção.[18]
A obra de Cristo na cruz é a base sobre a qual o perdão divino é oferecido a todos os homens de todas as nações através das gerações.
A negação da expiação ilimitada é uma adesão à soteriologia elitista gnóstica contra a qual Timóteo deveria combater (1Tm 2:6, 4:10). Nas Epístolas Pastorais Deus é apresentado como o Salvador de todos os homens (veja também Tt 2:11). Russel Champlin[19] diz que os gnósticos limitavam a salvação.
Para Colin Brown a mensagem paulina inclusivista apresentada nas Pastorais tem como foco opor-se ao exclusivismo de judeus e gnósticos. Ele escreveu:
Contrastam-se [as Epístolas Pastorais] com a atitude exclusiva da sinagoga e dos gnósticos, que prometiam a salvação somente para os justos ou para aqueles que possuem o conhecimento. [20]
O autor ainda diz ser o Deus vivo e verdadeiro “o Salvador de todos os homens”. Não podemos esperar nada menos do Evangelho. O contrário é uma ofensa a esse Evangelho. Erram grotescamente os intérpretes que afirmam ser Paulo um particularista. À luz da Epístolas Pastorais isso é impossível.
Há um excerto de Millard Erickson no texto A Obra Salvífica de Cristo[21] escrito por Daniel B. Pecota, que vale a pena apresentar:
A hipótese da expiação universalista consegue levar em conta um segmento maior do testemunho bíblico com menos distorção que a hipótese da expiação limitada.
Creio ser o universalismo qualificado o ensino bíblico a ser adotado e apresentado por todos os crentes. Deus, ao mundo, de modo inequívoco, manifestou Seu propósito salvífico com claras intenções de salvar a todos os homens.
___________________
[1] Esta teoria advoga que a expiação é ilimitada quanto a sua eficácia e extensão. Ela não será discutida porque é rejeitada pelos particularistas e adeptos do universalismo qualificado. A razão desta rejeição se dá devido ao fato das Escrituras negarem peremptoriamente a sua validade como doutrina.
[2] Teólogo holandês (1560-1609), nasceu em Oudewater, no sul da Holanda. Sua formação teológica aconteceu principalmente na Universidade de Leyden e em Genebra, e foi ordenado no ano de 1588. De 1603 até sua morte, foi professor naquela Universidade. Um de seus mestres foi Teodoro Beza, sucessor de Calvino, fato que evidencia o quanto a educação de Armínio fora estritamente reformada – tipo calvinista.
[3] Remonstrance significa “protesto”. Esse é o título do documento, provavelmente escrito por João Uyttenbogaert, que rejeitando tanto o supra como o infralapsarianismo apresentava Os Cinco Artigos Arminianos. Este documento foi dirigido às províncias da Holanda e de Frieslândia, em 1610. Por esta causa, os ministros receberam a alcunha de “remonstrantes” e foram privados de seus ministérios.
[4] COLLINS, Kenneth J. Teologia de John Wesley. Rio de janeiro: CPAD, p.147, 2010.
[5] Graça preveniente é aquela que antecede qualquer decisão do homem frente aos apelos do Evangelho. Devido ao fato da depravação total do homem, ele não tem condições de, por si mesmo, arrepender-se. Por isso torna-se necessária uma ação graciosa da parte de Deus que venha tornar a vontade humana livre para escolher ou não cooperar com o Espírito Santo. Esta cooperação não é complementar ou substitutiva, em qualquer aspecto que seja, à obra da graça divina.
[6] VINE, W.E.; UNGER, Merril F.; JR. William White. Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD, p. 944, 2011.
[7] Livre-arbítrio, segundo concebo, é a capacidade humana de, por si mesma, isto é, independente de qualquer determinação causal, poder decidir entre A e B sob as mesmas circunstâncias. Não há nada que dirija a escolha por B em detrimento de A além da própria pessoa. Caso ela queira, escolherá, do mesmo modo, A em detrimento de B. Deuteronômio 30:15, 19: “Vê que proponho hoje a vida e o bem, a morte e o mal […] escolhe, pois, a vida para que vivas […]”.
[8] Extraído de <arminianismo.com> Acesso em 03 dez. 2012.
[9] In: Bíblia de Estudos Palavras-Chave Hebraico e Grego – 2ª Ed.; 2ª reimpr. Rio de janeiro: CPAD, p. 2272, 2011.
[10] RADMACHER, Earl D.; ALLEN, Ronald B.; HOUSE, H. Wayne. O Novo Comentário Bíblico do Novo Testamento. Rio de Janeiro: Central Gospel, p. 727, 2010.
[11] In: Comentário Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, p. 2099, 2009.
[12] In: CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo: Millenium, vol. 6, p. 234, 1988.
[13] ibid., p. 233.
[14] ibid., p. 231.
[15] GEISLER, Norman. Teologia Sistemática. Rio de Janeiro: CPAD, vol. 2, p. 295, 2010.
[16]GINGRICH, F. Wlibur. Léxico do Novo Testamento: grego / português. São Paulo, p. 120, 1993.
[17]HODGE, Charles. Teologia Sistemática. São Paulo: Hagnos, p. 510, 2003.
[18]Extraído de<www.arminianismo.com> Acesso em 05 dez. 2012.
[19]In: CHAMPLIN, Russel Norman. O Novo Testamento Interpretado Versículo por Versículo. São Paulo: Millenium, vol. 5, p. 300, 1988.
[20] COENEN, Lothar; BROWN, Colin. Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, p. 2016, 2000.
[21] PECOTA, Daniel B. A Obra Salvífica de Cristo. In: HORTON, Stanley (org.). Teologia Sistemática. Rio de janeiro: CPAD, p. 360, 1996.
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