estudos bíblicos
Jesus e o bando de loucos
A boa teologia não é irracional, tampouco racionalista.
O sofrimento do Senhor Jesus Cristo não se restringiu à Cruz: durante toda a Sua vida, Ele sofreu com a hipocrisia, a mentira, a inveja, a falsa religiosidade, os intentos malignos, a discriminação, a rejeição.
Sua angústia era maior porque, sendo Deus, conhece os corações: ao conversar com pessoas que O elogiavam ou O tratavam com brandura, podia enxergar claramente o que, de fato, regia palavras tão doces, e nem sempre a cordialidade refletia um coração honesto.
Lendo o Livro de Marcos, chegamos, no cap. 3, vv. 20 e 21, a uma passagem intrigante:
“E foram para uma casa. E afluiu outra vez a multidão, de tal maneira que nem sequer podiam comer pão. E, quando os seus ouviram isto, saíram para o prender; porque diziam: Está fora de si”.
Até a leitura desse trecho, passamos por vários episódios e comentários registrados pelo Evangelista: o ministério de João Batista apresentado como cumprimento de Isaías e Malaquias; o batismo no Jordão; a tentação no deserto; o início do ministério de Jesus (na Galileia); a cura do endemoninhado em Cafarnaum; a cura da sogra de Pedro; uma síntese de várias curas e expulsões de demônios; o momento em que Pedro diz “Todos te buscam”; a cura de um leproso; a cura do paralítico em Cafarnaum; a vocação de Levi (Mateus); o banquete na casa de Levi; a controvérsia em torno do jejum; a questão em torno do sábado; a cura do homem da mão mirrada; a expansão regional do ministério; a eleição dos Doze.
Então, antes do relato da blasfêmia dos escribas, que acusaram Jesus de ser endemoninhado e de expulsar demônios em nome de Belzebu, lemos esse relato de que a família de Jesus foi procurá-lO por ter ouvido dizer que Ele estava “fora de si”. Marcos registra, a tintas fortes, que Seus familiares “saíram para o prender”.
Mas, o que Jesus fazia, na ocasião, para que espalhassem o boato de que estivesse louco? Não exibia o Mestre um comportamento normal? O texto conta que Ele era cercado por uma multidão, de tal maneira que “sequer podiam comer pão”.
De modo geral, no ministério do Senhor Jesus, houve uma agitação social de que participavam pessoas com deficiência, carentes, enfermas, problemáticas, preocupadas, angustiadas, desalinhadas – enfim, pessoas tidas por “anormais” e “pecadoras”. Para os que se achavam justos, aquilo só podia ser atribuído à loucura do protagonista. Onde já se viu liderar uma multidão de desajustados, a partir de fundamentos insólitos?
Outros motivos iam-se somando, porque – devemos reconhecer! – Jesus vinha fazendo algumas coisas bem “loucas”: Ele tocou num leproso, disse que perdoava pecados, comia com publicanos e pecadores, e, em dia de sábado, curou um enfermo e deixou que Seus discípulos colhessem espigas. Multidões procuravam-nO, primeiro de Cafarnaum, depois de toda a Galileia, Judeia, Idumeia, dalém do Jordão, de Tiro e Sidom.
O movimento crescia, agregava pessoas de perto e de longe, e, embora Jesus pedisse que elas fossem discretas (para não antecipar as coisas), elas saíam divulgando os fatos que testemunhavam (cf. Mc 1.43-45).
Tudo era inédito. Até o ensino de Jesus era considerado diferente, porque falava “como tendo autoridade e não como os escribas” (cf. Mc 1.22). A novidade das palavras e obras d’Aquele Profeta satisfazia as profundas necessidades de um povo sofrido e desprezado – povo que Ele jamais considerou como justo simplesmente por ser pobre, mas que também não discriminou.
Temos, pois, elementos para entender que Jesus era acusado de ser uma espécie de líder religioso fanático, irreverente, sectário, um personagem que incentivava a criação de uma seita dentro do Judaísmo.
Foi por causa dessa suspeita que, depois de um interlúdio relativo à acusação de ser endemoninhado, a família se Jesus se postou do lado de fora da casa em que ele Se encontrava (cf. Mc 3.31-35). Maria e os irmãos do Senhor “mandaram-no chamar”, ao que Jesus, de modo maravilhoso, respondeu que Sua família é composta por aqueles que fazem a vontade de Deus.
Aqui abro parênteses para pensar sobre a situação de Maria, que, àquela altura, não parece ter se lembrado das coisas que o anjo Gabriel lhe dissera ao anunciar o nascimento de Jesus (cf. Lc 1.26-38). Tais coisas eram também “muito loucas”: ela mesma fora escolhida dentre tantas mulheres para uma missão extraordinária; ela era virgem, e conceberia do Espírito Santo; Seu Filho seria “grande”, chamado “Filho do Altíssimo”, rei constituído por Deus, para sempre, sobre o trono de Davi. E, no entanto, agora esse Filho estava ali, dentro de uma casa de terceiros, sem Se alimentar, cercado por uma multidão ansiosa e em franca contradição quanto aos fariseus e escribas, que representavam o sistema religioso… Bem, talvez Maria tenha pensado que tudo aquilo estava muito distante do que lhe fora prometido…
Ao pensar na “loucura” de Jesus, como não pensar na “loucura da pregação”, a que Paulo se refere em 1 Co 1.17-31? Como não lembrar de que a mensagem cristã é inadmissível, incompreensível à perspectiva humana (cf. 1 Co 2.1-16)? Como pode um Deus enviar Seu Único Filho para morrer por figuras que Ele criou sabendo que iriam pecar? E de onde vem tanto amor? Só pode ser loucura mesmo!
Desde sempre houve a suspeita de que os crentes eram fanáticos: no Sinédrio, Gamaliel, doutor da Lei e fariseu, ao se debruçar sobre a pregação cristã, citou como precedentes os casos de dois movimentos sectários liderados por Teudas e Judas, o que evidencia a acusação que pesava sobre a comunidade cristã em seu nascedouro (cf. At 5.34-41); numa audiência judicial, na presença do rei Agripa, o governador Festo disse ao Apóstolo dos Gentios: “Estás louco, Paulo! As muitas letras te fazem delirar!” (cf. At 26.24). E qual a loucura de Paulo? Ele falava da ressurreição de Cristo como fundamento da salvação.
No curso da história da Igreja, temos sido considerados um bando de loucos. Nadamos contra a correnteza; não nos encaixamos; falamos de coisas que ninguém entende; admitimos a realidade do pecado; nosso Líder é um morto que ressuscitou e disse que vai voltar; cremos em milagres; apregoamos a possibilidade de santificação; temos esperança no mundo vindouro; reconhecemos a existência do inferno; dizemos as pessoas precisam escapar do juízo; nossos líderes são frequentemente homens simples e indoutos, que não seriam reputados mestres em nenhuma outra instância, mas que reputamos como cheios do Espírito e ensinadores da justiça.
Mais do que isso: um componente de “loucura” é, na verdade, inerente à mensagem do Evangelho, porque, como disse Jesus, “o meu reino não é deste mundo” (cf. Jo 18.36). A isto se associa o fato de que é necessário haver certa perseguição aos crentes, ainda que de forma velada, ainda que não a provoquemos, ainda que procuremos viver em paz. A Igreja nunca estará confortável neste mundo – quem está confortável precisa rever se é crente mesmo.
A Fé e a Razão constituem dois meios de obtenção do conhecimento verdadeiro, mas cada uma preenche o espaço que Deus lhe reservou. Devemos sim utilizar a razão para compreender as coisas espirituais, mas – atenção! – somente o homem espiritual consegue que sua razão seja iluminada pelo Espírito Santo, o que se alcança por meio da fé. A boa teologia não é irracional, tampouco racionalista: a boa teologia é aquela que reconhece os limites da razão humana, e que glorifica a Deus justamente por entender que a Sua Palavra revela mistérios.
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