opinião
Mito, magia e mistério
Para a mente pré-moderna, o conteúdo da religião é um mistério, seu fundamento é um mito e seu exercício se dá pela magia.
Pense rápido: a maioria das pessoas na sociedade brasileira é como o esquerdista vegano e “descolado” que abraçou uma versão ocidental do budismo ou é como o cidadão comum, do baixo proletariado, que tece julgamentos ligeiros sobre o pecado que alguém deve ter cometido para morrer “daquele jeito?”
A maioria das pessoas é como o universitário maconheiro adepto do poliamor ou é como a “tia do WhatsApp” que compartilha, assombrada, falsas profecias sobre como a cidade do Rio de Janeiro vai ser tomada por tsunamis?
A questão não é irrelevante. Meu interesse no tema é primariamente pastoral: preciso conhecer as pessoas que evangelizo e auxilio, assim como preciso conhecer a mim mesmo. Além desse aspecto mais prático, estamos também num terreno de grande valor para a filosofia, a antropologia cristã, a apologética e a teoria do conhecimento (neste caso, porque há de se perguntar quais os critérios que as pessoas empregam para sua avaliação do que é a verdade).
O apóstolo Paulo sugere-nos a relevância de conhecermos “o tempo” (cf. Rm 13.11). Nesse sentido, o estudo das cosmovisões e do “espírito da época” é muito importante para compreendermos a realidade que nos cerca.
Aprendemos em livros e palestras que o mundo pós-moderno se caracteriza por ingredientes como o relativismo, o pluralismo, o subjetivismo, o hedonismo, o imediatismo, o secularismo, a fragmentação das relações, a privatização da fé. Em linhas gerais, o Homem Pós-moderno é aquele que desistiu de procurar a verdade absoluta, vista como inexistente ou impossível de ser alcançada. O relativismo quanto à verdade se faz acompanhar do relativismo quanto à moral: se tudo é racionalmente aceitável, tudo é moralmente admissível.
Diferente do Homem Moderno, que tinha certezas científicas e racionais e acreditava no progresso da humanidade, o Pós-moderno, ressabiado com guerras, miséria e instabilidade, decidiu que o melhor que pode fazer é aproveitar os prazeres do agora, porque “do amanhã ninguém sabe”.
Considerando essas lições básicas, é curioso que muitos evangélicos brasileiros pensem como o Homem da Antiguidade ou da Idade Média: esquecendo que a Bíblia, embora escrita na Idade Antiga, fala de coisas eternas, essas pessoas absorvem componentes pré-modernos de raciocínio, em vez de absorverem os princípios universais e eternos da Palavra de Deus.
Refiro-me, por exemplo, à interpretação de fatos naturais, sociais e históricos a partir de uma lei de causa e efeito que não difere muito do que pensavam civilizações anteriores à Antiguidade Clássica – e, pior de tudo, dizendo que tais crendices e superstições têm base bíblica!
Diante do cenário social brasileiro, e refletindo especialmente sobre a mentalidade evangélica dominante, fico avaliando se não precisamos discernir com maior precisão a maneira como as pessoas têm interagido com o mundo pós-moderno. Isto porque, em vez de se encaixar no modelo que caracteriza a pós-modernidade, muita gente se acha envolvida numa mentalidade pré-moderna.
Cabe deixar bem claro que a Bíblia Sagrada fala a todo tipo de mentalidade, seja ela antiga, medieval, moderna, pós-moderna ou qualquer outra que venha a ser identificada. E, mais do que isso, devemos ter bem patente que, enquanto o mundo passa, a Palavra de Deus permanece (cf. Mt 24.35). Não realçamos o antigo em detrimento do moderno, mas, sim, o eterno em relação a toda e qualquer tendência humana, de forma universal e atemporal.
O que pretendo destacar é que, enquanto gastamos tempo pregando sobre o Homem Pós-moderno – e esse tempo, diga-se, é justificado -, talvez deixemos de refletir o suficiente sobre o fato de que muitas pessoas, por variadas razões, ainda estão imersas numa cosmovisão baseada em mito, magia e mistério, compartilhando crenças e superstições reprovadas não só pela Bíblia, mas também pela Razão, pela Ciência e pelo desenvolvimento social.
Mesmo num mundo pós-Revolução Industrial e em plena Era da Informação, grandes contingentes populacionais no mundo estão à margem do acúmulo de conhecimento envolvido, ainda que aproveitem, em maior ou menor escala, dos bens de consumo e serviços produzidos por esse conhecimento. É certo que existem outras formas de saber, como a Tradição, o Senso comum e a Cultura, mas a mente pré-moderna se caracteriza justamente por uma concepção forjada ao largo do que a educação e o método científico podem oferecer.
A mente pré-moderna vive tateando no escuro, com medo das forças da natureza, sacrificando a quem lhe infunde mais pavor, pensando que o mundo é uma caixa de ressonância das intrigas, pelejas e paixões de um turbilhão de deuses tomados de sentimentos humanos. Essa mentalidade reconhece a várias entidades o contato com o transcendente, e a todas quer agradar, não por desejo de comunhão, mas por medo de insucessos. Quando não sacrifica a vários deuses, cai prostrada diante do dogma.
Para a mente pré-moderna, o conteúdo da religião é um mistério, seu fundamento é um mito e seu exercício se dá pela magia.
Repare nisto: no campo evangélico “neopentecostal” ou pseudopentecostal, há um segmento para o qual o conteúdo da religião é um mistério reservado ao que receberam “a unção”, e não uma revelação dirigida a todos; o fundamento da religião passa a ser um mito porque depende mais do imaginário dos líderes eclesiásticos do que daquilo que está escrito na Bíblia, utilizada preponderantemente como simples referencial e pretexto; e o exercício da religião se torna magia porque é nos processos mágicos de “prece forte”, “descarrego”, “atos proféticos” e oração no monte que as coisas “têm de acontecer”.
O êxito dos pregadores de prosperidade, sensacionalistas e triunfalistas, assim como dos proponentes de uma doutrina distorcida de batalha espiritual, provém, em alguma medida, do perfil pré-moderno da mentalidade brasileira, facilmente seduzido por propostas mágicas, fetichistas e sincréticas.
O pré-moderno e o pós-moderno acham-se frequentemente misturados, um influenciando o outro, mas com suas peculiaridades: o primeiro tem certeza de que tudo o que acontece decorre de uma causa sobrenatural; o segundo não tem certeza de nada, e pensa que isso não importa; o primeiro vive com medo de tudo, e busca rituais para resolver seus problemas (do agora e do porvir); o segundo desistiu de lutar contra a instabilidade e a incerteza, e busca ideias, teorias, técnicas e filosofias para enfrentar os monstros que carrega consigo, e para tentar preencher o vazio que leva na alma.
Cabe à igreja local lidar com pessoas reais, apresentando-lhes o Evangelho autêntico e inteiro, e para isso precisa ouvir, conviver, contextualizar-se, “atravessar a cidade”, como Jesus fazia. Ficaremos talvez surpresos quando percebermos que, em meio a um mundo secularizado e fragmentado deste início de século, para cuja compreensão gostamos de revisitar nossos materiais sobre pós-modernidade, existe u’a maioria silenciosa cujas angústias e características lembram, a cores fortes, as populações do mundo antigo, em que nosso Mestre e Seus apóstolos iniciaram a pregação da fé.
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