estudos bíblicos
O que é teologia bíblica?
Uma análise de Gênesis 18:22-33
A Teologia Bíblica tem reencontrado sua relevância na atualidade, revelando-nos aspectos não tão claros do texto bíblico. Há inúmeros exemplos recentes e, cada vez mais, teólogos têm discutido a importância dos pressupostos na análise geral da Bíblia, bem como o processo da própria interpretação em si e as fronteiras entre o exegético e, numa perspectiva mais ampla, o hermenêutico.
As duas expressões embora muitas vezes usada de maneira intercambiável, não são necessariamente sinônimas. A exegese é, essencialmente, análise lógico-gramatical, cujos desdobramentos não podem abrir mão de conhecimentos periféricos, coloquemos assim, tais como aspectos sócio-culturais e geográficos, políticos e religiosos, enfim, daquilo que, a mais, circunscreve o texto em questão.
É neste ponto que os teólogos bíblicos da atualidade tentam reacender o interesse de uma busca imediata pelo sentido do texto a partir de uma análise pessoal, pontual e minuciosa.
Exemplos de como tudo isso pode ser fascinante são facilmente encontrados lendo-se algumas passagens vétero e neo-testamentárias, das quais surgem muitas e diferentes lições. Uma muito conhecida é a de Gênesis, cap. 18, vss. 22-33:
“Então, partiram dali aqueles homens e foram para Sodoma; porém Abraão permaneceu ainda na presença do SENHOR. E, aproximando-se a ele, disse: Destruirás o justo com o ímpio? Se houver, porventura, cinqüenta justos na cidade, destruirás ainda assim e não pouparás o lugar por amor dos cinqüenta justos que nela se encontram? Longe de ti o fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra? Então, disse o SENHOR: Se eu achar em Sodoma cinqüenta justos dentro da cidade, pouparei a cidade toda por amor deles. Disse mais Abraão: Eis que me atrevo a falar ao Senhor, eu que sou pó e cinza. Na hipótese de faltarem cinco para cinqüenta justos, destruirás por isso toda a cidade? Ele respondeu: Não a destruirei se eu achar ali quarenta e cinco. Disse-lhe ainda mais Abraão: E se, porventura, houver ali quarenta? Respondeu: Não o farei por amor dos quarenta. Insistiu: Não se ire o Senhor, falarei ainda: Se houver, porventura, ali trinta? Respondeu o SENHOR: Não o farei se eu encontrar ali trinta. Continuou Abraão: Eis que me atrevi a falar ao Senhor: Se, porventura, houver ali vinte? Respondeu o SENHOR: Não a destruirei por amor dos vinte. Disse ainda Abraão: Não se ire o Senhor, se lhe falo somente mais esta vez: Se, porventura, houver ali dez? Respondeu o SENHOR: Não a destruirei por amor dos dez. Tendo cessado de falar a Abraão, retirou-se o SENHOR; e Abraão voltou para o seu lugar”.
A princípio, é impossível não pensarmos o que o senso comum defende, numa primeira olhada no texto. Comumente, entende-se que Abraão intercedeu pela cidade e, preocupado com a mesma, pergunta se o SENHOR Deus a destruiria ou, mais especificamente, “o justo com o ímpio”.
Uma análise mais acurada, por sua vez, revelará que o motivo de Abraão talvez tenha sido menos nobre: sabedor de que Ló, seu sobrinho, habitava a cidade, talvez ele fosse sua real preocupação. Não sabemos ao certo e o que temos é o texto tão somente, e é aí que entra não uma mera interpretação analítica, ou léxico-gramatical (exegese), mas um trabalho que transcende e, penso, evidencia a diferença mais nitidamente do que significa teologia bíblica; o que, certamente, não pode se prender à simples leitura do senso comum.
No diálogo de Abraão com Deus, algo se nos evidencia: Abraão começa com 50 justos habitando hipoteticamente na cidade. Daí, talvez sabendo da pouca probabilidade de haver 50, ele decresce a quantidade, e, finalmente, chega ao número hipotético de 10. A evidência – que também se revelará o cerne da própria teologia bíblica -, é a indução, própria de um processo que nos permite, antes de formularmos qualquer juízo de valor, perguntarmos: por que Abraão perguntou estas quantidades? Estaria ele querendo livrar apenas seu sobrinho Ló?
Se sim, por que ele não perguntou logo pelo mesmo, uma vez que ele sabia com quem estava falando? Estas perguntas de Abraão seriam em função de Deus se revelar, na ocasião, como um homem? Isto porque, versículos antes, diz-nos a Bíblia que a figura que representa o próprio Deus, bem como os dois outros homens que o acompanhavam, comeram o que Abraão lhes ofereceu (18:3). A figura representativa do próprio Deus posteriormente afirma: “Descerei e verei se, de fato, o que têm praticado corresponde a esse clamor que é vindo até mim; e, se assim não é, sabê-lo-ei” (18:23).
Quase como se quisesse insinuar a Abraão que era necessário verificar por si mesmo para que soubesse. Talvez, naquela época, fosse difícil aos homens entenderem o conceito de onisciência divina na abrangência como o mesmo vem a se desvelar nas páginas da Escritura. O fato é que, como evidência da singularidade do texto, é essa colocação que parece gerar o diálogo famoso acerca da destruição “do justo com o ímpio”.
Entre 50 de 10 há 40 unidades. Se a contagem de Abraão se inicia com 50 e termina com 10, talvez o “Pai da Multidão” (significado do nome “Abraão”) realmente imaginasse que na cidade haveria, ao menos, 10 justos, e que Ló era um deles estando, consequentemente, a salvo.
O curioso é que, como sabemos, na cidade só havia 1 justo, que era o próprio Ló e, após os homens terem retirado a Ló e sua família da cidade (seus genros não quiseram sair), Sodoma e cidades circunvizinhas foram completamente destruídas. Ora, se Abraão começa perguntando se Deus destruiria o justo com ímpio, questionando o que aconteceria se houvesse 50 justos, e vai baixando até 10 – ou seja, uma diferença de 40 pessoas -, por que Deus destruíra a cidade, se ao invés de 10, só havia 1 – uma diferença de 9 pessoas? Não faz sentido algum! Numa diferença de 40 pessoas, Deus afirmara que não destruiria Sodoma; como houve menos que 10, Deus a destruiu; mas lembre-se de que a diferença de pessoas na petição de Abraão (40) é maior do que entre o número em que Abraão parou, no seu diálogo com Deus (10). De 10 para 1 há 9. Numa diferença de 40 indivíduos, Deus não a destruiria. Numa diferença de 9, Deus a destruiu. Conseguiu ver o contrassenso?
A Teologia Bíblica, assim como a Teologia Sistemática, não pode abrir mão de pressupostos. Contudo, penso que os teólogos bíblicos estão mais cônscios de suas induções teológicas, a partir de pressupostos, de axiomas sobre os quais desdobram-se os conceitos que culminarão em dogmas teológicos. É mister compreender que, como pressuposto, não é possível imaginar a pessoa de Deus como injusta. Esta ideia está no centro mesmo do diálogo entre Abraão e Deus. Deus afirma que não ocultaria o que estava por fazer, por Abraão ser o “pai de nações” e ter sido colocado para ordenar a sua casa (18:19).
Ao perguntar a Deus sobre o que faria, Abraão afirma que “longe de Deus, matar o justo com o ímpio” e que faria justiça sim, o “Juíz de toda a terra”. Esses pressupostos são fundamentais para entendermos que o âmago da questão não é, necessariamente, a quantidade de pessoas na cidade, que pereceriam caso a mesma fosse destruída; mas se Deus, “Juiz de toda a terra”, destruiria o justo com ímpio.
Sendo assim, olhando-se o mais imparcialmente possível o texto, torna-se claro que antes de apelar pela não destruição da cidade, Abraão evoca a ideia de que Deus não ´pode´ fazer qualquer coisa inerentemente injusta, ou que fira aquilo que Ele é. Este é o “pressuposto”, o axioma, a “raiz” através da qual constrói-se todo o texto. O que o autor sagrado quis demonstrar na narrativa que Gênesis 18 foi nada menos que a primeira vez em que Deus é evidenciado como “Juiz de toda a terra”, ou seja, de que Ele perfeitamente justo.
O perfeito, por definição, não oscila, não vacila. O perfeito Juiz não poderia “destruir o justo com o ímpio”. E aqui está a conclusão desta exposição acerca de tão conhecido texto. A partir do texto, pelo texto e voltando àquilo que o próprio texto sugere, delineia-se um quadro, uma imagem, cuja figura revela com mais nitidez o que pretendeu o autor sagrado, através do cerne da questão proposta: uma leitura mais adequada para fins de uma Teologia Bíblica.
Com adequada, não retiro em absoluto a força de uma correta interpretação léxio-gramatical. Não prescindo a importância de haver os conhecimentos histórico, geográfico e literário, ainda que todos sejam secundários à análise textual, acerca do que se quis dizer durante todo esse tempo. A leitura, em si, torna-se também plena: mais do que um texto com fortes conotações missiológicas (e todos querem ver em Abraão fortes indícios de que ele fora realmente uma espécie de “primeiro missionário”), o texto revela a perfeição de Deus, que se nos é explícita com a afirmação:
“Se houver, porventura, cinqüenta justos na cidade, destruirás ainda assim e não pouparás o lugar por amor dos cinqüenta justos que nela se encontram? Longe de ti o fazeres tal coisa, matares o justo com o ímpio, como se o justo fosse igual ao ímpio; longe de ti. Não fará justiça o Juiz de toda a terra?”, (vss. 24, 25).
E, apesar de haver um questionamento sobre o texto, alusivo àquilo que Deus fará, o âmago teológico parece óbvio: quem Deus é! A Teologia Bíblica nos orienta, portanto, a olharmos mais cuidadosamente o texto bíblico. Este cuidado não deixa de se valer da indução na lógica textual, das perguntas, das inferências a partir do que se nos é apresentado pelo texto, não permitindo, contudo, que contentemo-nos com o que nos é dito (e repetido) pelo senso comum. Gênesis 18:22-33 é, como bem sabemos, parte de um todo.
O “todo” escriturístico é a própria composição da Teologia Sistemática, cuja pretensão é esgotar os termos, preceitos e dogmas doutrinários, juntando as partes que formarão este mesmo “todo”. A perspectiva da Teologia Bíblica é, grosso modo, o inverso, com o mesmo objetivo. O “todo” é também o objetivo da Teologia Bíblica, mas não o todo esgotado, como pretende a Teologia Sistemática.
É um “todo” pontual, limitado ao texto ao qual se alude. É um todo textual fechado sobre si, autossuficiente, que se vale dos recursos obtidos a partir do próprio texto, em princípio, para livrá-lo de toda a má interpretação, de toda incoerência, de toda falsa dedução que possa surgir, ainda que aquelas tenham o formato proposto que pode até parecer óbvio, mas se revela absolutamente incoerente.
E, afinal de contas, não há nada mais simultaneamente tão belo e difícil, em termos interpretativos, do que a revelação de quem Deus é, concomitante àquilo que Ele faz e como faz, de modo que, após extenuantes momentos a sós para interpretação, temos a convicção de que ainda que não entendamos – e nunca entenderemos por completo -, quem Deus é o que Ele faz refletem sua própria natureza: perfeição.