cosmovisão
Deus no Antigo e Novo Testamento (Parte 1: Amor e Graça)
Se o Novo Testamento está descrevendo um Deus diferente do Antigo, um destes dois conjuntos das Escrituras está errado.
Cristãos e não-cristãos ao longo da história têm encontrado dificuldades para conciliar a natureza e as ações de Deus naquilo que conhecemos como o Antigo e o Novo Testamento. Geralmente, há um sentimento de que Deus mudou seu comportamento, sua natureza, ou que dois deuses diferentes são apresentados na Bíblia.
Uma visão popular é algo como Bart Ehrman, o teólogo e historiador americano que abandonou a fé, descreve sobre o pensamento de algumas pessoas: “O Deus do Antigo Testamento era um Deus de julgamento colérico e vingativo; o Deus de Jesus era um Deus amoroso e misericordioso de salvação. Quão diferentes eram esses dois deuses? […] estes [são] dois deuses diferentes.”[1]
Deve ser afirmado, antes de tudo, que Deus é um. Nem os judeus nem os cristãos têm a ideia de dois deuses diferentes. Se o Novo Testamento está descrevendo um Deus diferente do Antigo, um destes dois conjuntos das Escrituras está errado. Na verdade, é exatamente nisto que muitos judeus acreditam, rejeitando qualquer tipo de Cristologia (o fato de que Jesus é Deus). Contudo, este artigo não tem a intenção de fornecer evidências da divindade de Cristo.
Pressupõe-se que Deus é o mesmo em ambos os Testamentos, pois é o entendimento do Cristianismo. Como disse o apóstolo, “Pois mesmo que haja os chamados deuses, quer no céu, quer na terra […] para nós, porém, há um único Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas e para quem vivemos; e um só Senhor, Jesus Cristo, por meio de quem vieram todas as coisas e por meio de quem vivemos (1 Cor 8:6).[2]
Jesus é feito igual a Deus em todo Novo Testamento, e a ideia de apenas um Deus nunca saiu da mente daqueles judeus convertidos ao Cristianismo – é uma ideia inegociável. Espero deixar claro que é impossível para Deus mudar suas ações e atitudes, sendo o mesmo Deus descrito sem nenhuma contradição ou divergência em todas as Escrituras.
O que mudou, infelizmente, é a compreensão humana de Deus e da própria humanidade, o que abrange principalmente a definição de amor, graça, justiça e ira. Isso será desdobrado em duas maiores partes explicando as principais características de Deus no Antigo e no Novo Testamento; os problemas que distorceram nossa visão de Deus e de nós mesmos; e uma inferência lógica e simples de que Deus logicamente não pode mudar.
Deus no Antigo e Novo Testamento
1.1 Deus de amor
Definir o amor não é uma tarefa fácil. É quase o mesmo, senão o mesmo, de definir o próprio Deus. D.A. Carson, renomado teólogo americano, apesar das diferenças teológicas que temos sobre algumas doutrinas, reconhece bem esse fato ao chamar de “difícil doutrina do amor de Deus”, visto que “quando cristãos informados falam sobre o amor de Deus, eles querem dizer algo muito diferente do que significa na cultura que nos cerca.”[3]
O amor é uma das palavras mais mal compreendidas e definidas em nossa atual cultura. Pode-se pesquisar a palavra em qualquer dicionário moderno e não chegará nem perto da definição real. No dicionário Oxford, a definição principal é “um sentimento intenso de profundo afeto.”[4]
Ora, o amor não é um sentimento. É, de forma simplória, uma atitude ativa de fazer o bem a alguém, mesmo quando os sentimentos não estão desempenhando nenhum papel relevante. A definição de amor não carrega em si mesma a sua sacralidade inerente. Para simplificar, o amor pode ser considerado a ética suprema, o elo perfeito de todas as coisas (vide Col 3:14).
É, de fato, como outros atributos, a própria natureza de Deus (vide 1 Jo 4:8). No entanto, o amor abrange todos os outros atributos de uma forma esplêndida e entrelaçada. O amor existe porque o relacionamento existe. Deus estava em um relacionamento de amor desde o início dentro da Trindade e criou os seres humanos, por Seu amor, para conhecer e desfrutar eternamente desta mesma relação baseada no amor (João 17:3).
O amor de Deus, entretanto, diferentemente de nossa compreensão cultural atual, é em uma esfera incondicional. Veja, o amor não é tão simples como uma equação matemática única, mas contêm várias esferas. O amor certamente não espera única e exclusivamente algo em troca, e faz tudo o que é possível para preservar um relacionamento saudável.
Contudo, ninguém espera viver em um relacionamento de amor não correspondido. O amor de Deus é benevolente, Ele tem uma boa vontade para todos, sejam crentes ou descrentes; o amor de Deus também é beneficente, Ele dá boas coisas aos crentes e não descrentes (veja Mt 5:45-46); mas o amor de Deus também é complacente, o amor que Deus tem para com o remido, direcionado primariamente à Cristo e também à todos que aceitam a Cristo. Esse amor salvífico é condicional e exclusivo aos que aceitam os termos de estar em relacionamento com Deus – crer e obedecer a Cristo, conforme as Escrituras. Esse amor é expressado desde o princípio e tornou-se disponível para todos, sendo permanentemente alcançável pelo fato de ser o objetivo máximo de Deus (relacionamento) derivado de sua própria essência (amor). A existência do amor pressupõe um conhecimento adequado do bem e do mal, pois procura-se evitar o mal para fazer o bem. Essa é a razão pela qual a liberdade de vontade (livre arbítrio) é necessária para que o amor exista.
Tendo dito isso, deve-se ter em mente que o amor de Deus para com a humanidade nunca mudou. De fato, o amor de Deus é claramente visto em todo o Antigo Testamento. Em primeiro lugar, Ele criou a humanidade por Seu amor – não havia nenhuma obrigatoriedade da parte de Deus em fazê-lo. Os seres humanos nem existiriam se Deus não tivesse decidido criá-los. O amor de Deus é claramente representado, em segundo lugar, ao poupar a vida de Adão e Eva após a queda, devido ao pecado. Ao permitir que o mal se tornasse real,[5] Deus poderia ter destruído a humanidade e colocado um fim ao problema. Na verdade, se Deus destruísse todo mal presente no mundo, neste momento, nenhum de nós estaria aqui para ver os resultados, já que somos efetivamente os agentes desse problema. No entanto, Deus cumpriu suas promessas por amor – pelo seu amor. A aliança de restauração universal de Deus como descrita em Gênesis 3:15 é o primeiro sinal de sua graça, estritamente ligada ao seu amor incondicional. A eleição de Israel por Deus também é um ato de amor; Deus o fez por quem Ele é, e não pelo o que a humanidade poderia ter feito naquele momento. Após a confirmação contínua de sua aliança, a humanidade, representada por Israel, manteve-se continuamente em condição de infidelidade aos termos dessa aliança. No entanto, como Spieckermann observa, “como uma resposta ao que Deus chama de ‘adultério’ de Israel, Deus confirma seu amor e fidelidade.”[6] Em Jeremias 31:3, pode-se perceber a extensão desse amor: “Porquanto com amor eterno te amei, por isso com benignidade te atraí” (Jeremias 31:3). Isaías 54:8 diz: “Com um pouco de ira escondi a minha face de ti por um momento; mas com benignidade eterna me compadecerei de ti, diz o Senhor, o teu Redentor” (Isaías 54:8). Deuteronômio 7: 7-8 diz: “O Senhor não tomou prazer em vós, nem vos escolheu, porque a vossa multidão era mais do que a de todos os outros povos, pois vós éreis menos em número do que todos os povos; Mas, porque o Senhor vos amava, e para guardar o juramento que fizera a vossos pais, o Senhor vos tirou com mão forte e vos resgatou da casa da servidão, da mão de Faraó, rei do Egito.” No passado, qualquer intervenção de Deus era apenas resultado de Seu amor e misericórdia – tudo que Deus fez [e faz] tem seu amor e misericórdia como fundamentos.
Finalmente, convém mencionar que não há distinção alguma da parte de Deus entre a antiga e nova aliança. O que há é uma nova revelação: o amor que Deus havia prometido desde o início foi plenamente conhecido na pessoa, na obra, na vida de Jesus Cristo. Jesus é o Redentor, aquele que viveu e morreu exclusivamente por amor. “Ninguém tem maior amor do que este, de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15:13). João, o apóstolo que escreveu abundantemente sobre amor, dado que vivia perto daquele que é o próprio amor, escreveu: “Nisto se manifestou o amor de Deus para conosco: que Deus enviou seu Filho unigênito ao mundo, para que por ele vivamos” (1 Jo 4:9). Essa é a promessa que Deus fez, destacando de uma vez por todas seu eterno e imutável amor. Como disse Theroux, “nenhum homem bom, ninguém [ainda que] moralmente correto e verdadeiro, teria se comportado como Jesus se comportou.”[7] Essa vida marcada do início ao fim por amor só foi possível porque Jesus é o filho unigênito de Deus, a segunda pessoa da Santíssima Trindade. “Deus mostra seu amor por nós porque, enquanto éramos ainda pecadores, Cristo morreu por nós” (Rom 5: 8). Não há distinção entre o Antigo e o Novo Testamento. O amor de Deus é conhecido de Gênesis a Apocalipse, desde o “no princípio”, até o último “amém.”
1.2 Deus de graça
A graça de Deus é geralmente pregada e ensinada à luz do Novo Testamento, visto sua revelação final em Jesus Cristo. Todavia, a imutável graça de Deus abunda desde o início de suas obras, visto ser um atributo da sua própria natureza. Conforme mencionado no tópico anterior, Deus faz conhecida a sua graça desde a queda da humanidade. A justiça de Deus exigiria, justamente, que as pessoas morressem, uma vez que “o salário do pecado é a morte” (Rom 6:23). No entanto, por causa de sua terna misericórdia, Deus ofereceu uma oportunidade à humanidade. Evidentemente, isso não é mérito humano, mas a expressão de Deus de seu santo ser. Como David A. Brondos bem colocou, “Por definição, graça é algo dado gratuitamente como um presente. Portanto, não pode ser merecido ou conquistado. Portanto, podemos definir graça como amor incondicional, ou seja, amor que é dado gratuitamente, independentemente de qualquer mérito ou dignidade por parte daqueles que recebem esse amor. Isso significa que a questão de saber se sola gratia é um atributo divino pode ser reafirmada em termos de se o amor de Deus é incondicional.”[8]
Ao ler os livros contidos no Antigo Testamento, como Juízes, Samuel, Reis e Crônicas, fica claro a quantidade de ocasiões em que Israel deliberadamente desobedeceu a Deus. Lembremo-nos que as orientações de Deus para o seu povo sempre foram para o benefício do próprio povo. Como resultado da desobediência, e suas consequentes ações ou reações naturais que destruíam o povo moralmente e fisicamente, a pena devida pelo que suas ações mereciam sempre foi dada; nunca, contudo, sem múltiplos prévios avisos e uma alternativa misericordiosa. Deus realmente pune. Não há dúvidas disso; sua justiça naturalmente demanda a punição para evitar a perpetuação do erro, mas ele também fornece uma solução advinda da sua inerente graça. Esta passagem fornece uma visão clara desse fato: “E o povo de Israel fez o que era mau aos olhos do Senhor […] eles abandonaram o Senhor […] eles provocaram a ira do Senhor […] Eles abandonaram o Senhor […] Então a ira do Senhor se acendeu contra Israel, e ele os entregou aos saqueadores […] E eles estavam em terrível angústia. Então o Senhor levantou juízes, que os livraram das mãos dos que os despojavam ”(Juízes 2: 11-14;16, grifo meu). Deus primeiramente dá o que eles merecem e que, em certa extensão, é consequência natural das suas escolhas. Mas logo em seguida, Deus dá aquilo que eles não merecem: um livre caminho para serem salvos dessa condição.
Na passagem supramencionada, como na totalidade da palavra de Deus, a relação entre a graça, a misericórdia , e a justiça é claramente notada. Essa relação é dada por Isaías ao afirmar: “Contudo, o Senhor espera o momento de ser bondoso com vocês; ele ainda se levantará para mostrar-lhes compaixão. Pois o Senhor é Deus de justiça. Como são felizes todos os que nele esperam!” (Isaías 30:18 – NVI). Como bem observou Faraoanu , “a misericórdia de Deus é Sua reação e solução para o problema do mal e do pecado,”[9] e “a misericórdia é a maneira como Deus se aproxima do homem, o que coincide com a atitude de amor que Deus mostra para os que estão em dificuldade.”[10] Portanto, este presente de Deus é concedido devido ao seu amor e misericórdia, conhecido desde o início da criação. Este dom, a saber, a graça, é conhecido de maneira ampla e completa na vida de Jesus Cristo. João disse: “o Verbo se fez carne e habitou entre nós, e vimos sua glória, glória como do único Filho da parte do Pai, cheio de graça e verdade”. (João 1:14). Paulo usa o Pai e o filho de maneira intercambiável ao dizer, “para que o nome de nosso Senhor Jesus seja glorificado em vós, e vós nele, segundo a graça de nosso Deus e do Senhor Jesus Cristo” (2 Tessalonicenses 1: 12). A graça de Deus é a graça do Filho, pois o Filho e o Pai são um. Afinal, ele revela toda sua graça ao vencer o mal e dar vida eterna a todos aqueles que creem em seu nome. Como Yates bem descreve, “O Senhor não se entrega ao mal, mas o combate. De fato, ao longo da história bíblica, podemos identificar um mecanismo: por um lado, a criação ou libertação alcançada por Deus; por outro lado, o caos causado pelo homem. Assim, temos esse binômio: misericórdia de Deus x pecado do homem ou o mal.”[11]
Este ato divino nunca foi novidade e não aconteceu exclusivamente no Novo Testamento, mas é a realização daquilo que Deus iniciou há milhares de anos. Tudo o que aconteceu no passado esteve voltado para esse objetivo final: a graça salvadora de Deus para todos os que creem. Yates novamente descreve bem essa relação:
Como resultado da queda, Adão entregou a suserania da terra a Satanás, que estabeleceu seus próprios príncipes e governantes demoníacos sobre as nações para agir em oposição aos propósitos do reino de Deus. Caim e Lameque refletem o comportamento daqueles que agem como vassalos de Satanás. O julgamento do Dilúvio foi necessário para limpar a terra de seu mal penetrante e dar à humanidade um novo começo. As alianças Adâmica e Noéica não são redentoras ou salvíficas em si mesmas, mas Deus age de forma redentora ao manter essas alianças, preservando uma linha divina por meio de Sete e levantando um mediador justo da aliança em Noé.[12]
Do começo ao fim, Deus mostrou/mostra sua graça e misericórdia para com sua criação. Independentemente do momento da história, Ele é “misericordioso e gracioso, tardio em irar-se e abundante em amor constante” (Salmo 103:8).
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[1] Ehrman, Bart D. Jesus, Interrupted: Revealing the Hidden Contradictions in the Bible (And Why We Don’t Know About Them), (New York: HarperCollins, 2009), 193-194. Traduzido livremente para o português.
[2] Salvo citação em contrário, todos os textos citados são da versão Almeida Corrigida e Revisada.
[3]D. A. Carson, The Difficult Doctrine of the Love of God (Leicester: Inter-Varsity Press, 2000), 10. Traduzido livremente para o português.
[4]Oxford Dictionaries, s.v. “love,” acessado em Outubro de 2017, https://en.oxforddictionaries.com/definition/love.
[5] Deus criou um mundo onde o mal é possível. Para que o amor exista, a liberdade de vontade é indispensável. Onde temos a liberdade de escolher entre o bem e o mal, o mal é possível. O amor só é possível neste cenário. Deus, que é amor e justo, não pode prejudicar a liberdade de sua criação, permitindo assim o privilégio da decisão à humanidade. Deus tornou o mal possível, mas as criaturas o tornam real. O mal é, portanto, uma consequência da decisão humana, e não uma criação objetiva de Deus.
[6] Hermann Spieckermann, “God’s Steadfast Love Towards a New Conception of Old Testament Theology.” Biblica 81, no. 3 (2000): 310. Traduzido livremente para o português.
[7]Paul H. Brazier, “’God … or a Bad, or Mad, Man’: C.S. Lewis’s Argument for Christ – A Systematic Theological, Historical and Philosophical Analysis of Aut Deus Aut Malus Homo.” Heythrop Journal 55, no. 1 (2014): 9. Traduzido livremente para o português.
[8]David A. Brondos, “Sola Gratia as Divine Attribute: Resurrecting the God of the Gospel,” Wiley Periodicals and Dialog, Inc. 54, no. 3 (2015): 269. Traduzido livremente para o português.
[9]Iulian Faraoanu, “Divine Mercy in the Holy Bible.” Romanian Journal of Artistic Creativity 4, no. 3 (2016): 45. Traduzido livremente para o português.
[10] Ibid., 43-44. Traduzido livremente para o português.
[11] Faraoanu, “Divine Mercy in the Holy Bible,” 46. Traduzido livremente para o português.
[12] Gary E Yates, “Biblical Theology, Vol. 1: The Common Grace Covenants.” Journal of the Evangelical Theological Society 58, no. 1 (2015): 162. Traduzido livremente para o português.