estudos bíblicos
Erros eclesiásticos: equiparação de doutrinas bíblicas com usos e costumes
Nunca é demais discorremos amorosamente sobre assuntos que, caso não sejam trabalhados de forma sábia pelas lideranças de nossas igrejas, podem gerar cristãos despreparados para lidarem com as diferenças permitidas pelas Escrituras em nosso meio.
Neste quarto texto voltado para a breve série que estamos escrevendo, iremos tratar de mais um deslize doutrinário que diversos líderes e igrejas cometem: o de nivelar o “peso” dos usos e costumes ao das doutrinas bíblicas. Fazendo isso, veremos o quanto esse erro grosseiro vem trazendo confusão e falta de equilíbrio espiritual entre os crentes das inúmeras denominações cristãs evangélicas.
Para chegarmos a um entendimento efetivo da precipitação de se equiparar doutrinas bíblicas a usos e costumes, iremos necessariamente definir conceitualmente cada uma dessas palavras, para, depois, trabalharmos alguns fatos bíblicos e sociais que nos ajudarão a nos desanuviar da negrura do legalismo religioso de nossos dias.
Conceituando doutrinas bíblicas e usos e costumes
O que são doutrinas bíblicas? Para responder a esta pergunta, lançaremos mão do que diz Pearlman1, em seu livro Conhecendo as Doutrinas da Bíblia:
Pode-se definir a doutrina cristã (a palavra “doutrina” significa “ensino” ou “instrução”) como as verdades fundamentais da Bíblia apresentadas de forma sistemática. Denomina-se habitualmente esse tipo de estudo de “teologia”, ou seja, “um tratado ou discurso racional acerca de Deus”. Descreve-se teologia ou doutrina (…) como a ciência que trata de nosso conhecimento de Deus e do relacionamento dele com o homem, compreendendo assim tudo quanto se relaciona a Deus e aos seus propósitos.
À título de exemplo, eis alguns temas doutrinários fundamentais da fé cristã: as Escrituras (Bibliologia); a natureza de Deus e seus atributos (Teologia); os anjos (Angelologia); o homem (Antropologia Bíblica); o pecado (Hamartiologia); o Senhor Jesus Cristo (Cristologia); a salvação (Soteriologia); a igreja (Eclesiologia); o Espírito Santo (Pneumatologia ou Paracletologia); as últimas coisas (Escatologia); entre outros. Então, como podemos observar, as doutrinas bíblicas são os ensinos fundamentais da verdadeira fé em Deus.
Ao passo que doutrinas bíblicas são instruções da parte de Deus ao seu povo, “costume” pode ser entendido como “hábito, prática frequente, regular”2. Já “uso” diz respeito a “hábito particular” ou “maneira, estilo, gosto ou comportamento que estão na moda”3.
Tanto os usos como os costumes, para serem compreendidos, precisam ser encarados, por exemplo, como o resultado de uma determinada cultura. E esta pode ser entendida como “tudo o que caracteriza uma sociedade qualquer, compreendendo sua linguagem, suas técnicas, artefatos, alimentos, costumes, mitos, padrões estéticos e éticos”4. Observe-se que os “costumes” estão inseridos na cultura, assim como os “usos” também.
Diante disso, podemos concordar que nós brasileiros temos nossos usos e costumes nas diversas facetas da vida em sociedade, assim como os personagens dos tempos bíblicos possuíam seus usos e costumes no mundo em que viviam.
Obviamente, nossa intenção com este texto não é sermos exaustivos nas palavras – até porque não costumamos escrever muito -, mas sim objetivos. Por isso, identificaremos alguns gargalos nos usos e costumes mais comuns na igreja brasileira.
O costume de usar barba
Nas Escrituras Sagradas encontramos inúmeros textos falando sobre o uso da barba. Mas nenhum advoga em favor de sua proibição. Então porque, em algumas denominações brasileiras, o uso de barba é condenado veementemente, inclusive chegando a compará-lo a um costume pecaminoso? Ao menos, por causa de duas motivações: 1) ignorância bíblica e/ou 2) legalismo farisaico.
Como dito, a Bíblia avaliza o uso de barba. Inclusive a barba era considerada um ornamento de honra para os homens dos tempos bíblicos (Salmo 133.1-2; 2 Samuel 10.4-5). Podemos ver em Isaías 15.1-2, quando da predição da ruína de Moabe, que a menção da tirada de “toda a barba” simboliza ali vergonha profunda para os moabitas.
No Novo Testamento também não há nenhuma menção de que o uso da barba é pecado; inclusive, como era judeu, até o Senhor Jesus possivelmente usava barba.
O costume das mulheres usarem joias e maquiagem
Pelo menos dois textos são comumente usados para “fundamentar” a proibição de uso de joias e adornos pelas irmãs nas igrejas. Eis abaixo os mesmos:
Que do mesmo modo as mulheres se ataviem em traje honesto, com pudor e modéstia, não com tranças, ou com ouro, ou pérolas, ou vestidos preciosos” (1 Timóteo 2.9).
O enfeite delas não seja o exterior, no frisado dos cabelos, no uso de joias de ouro, na compostura de vestes” (1 Pedro 3.3).
Antes de contra-argumentar, frizo que, desde novo na fé, aprendi com as Escrituras e com verdadeiros ensinadores da Palavra que, quando isolamos um versículo sem levarmos em consideração sua interpretação, bem como o seu contexto, acabamos criando um pretexto para afirmarmos algo que a própria Bíblia não diz. É o que acontece com esses trechos bíblicos. Observe que os versículos posteriores a 1 Timóteo 2.9 e 1 Pedro 3.3, trazem informações adicionais com relação às mulheres cristãs, enfatizando que as mulheres de Deus devem priorizar as boas obras, e não a beleza exterior; e que, em nenhum momento, estão proibidas de usarem joias e adornos. Se não, vejamos:
“mas (como convém a mulheres que fazem profissão de servir a Deus) com boas obras” (1 Timóteo 2.10).
“Ao contrário, esteja no ser interior, que não perece, beleza demonstrada num espírito dócil e tranquilo, o que é de grande valor para Deus” (1 Pedro 3.4, NVI5)
Ao lermos esses dois versículos, entendemos claramente que a prioridade que Paulo e Pedro estavam ensinando às irmãs era relativa à vida espiritual, ou seja, que as mulheres, antes de mais nada, procurassem honrar a Deus com uma vida piedosa e submissa à vontade divina. Logo, não deveriam dar primazia à beleza externa, em prejuízo da interna.
Além dessas passagens bíblicas, e de tantas outras que poderíamos mencionar, Ezequiel 16 derruba por terra qualquer oposição aos usos de joias e adornos por parte das irmãs nas igrejas. Em Ezequiel 16, por meio de uma alegoria, vemos Deus comparando sua glória sobre a nação de Israel a vários elementos de beleza:
Pus-lhe um vestido bordado (…) a vesti de linho e a cobri com roupas caras. Adornei-a com joias; pus braceletes em seus braços e uma gargantilha em torno de seu pescoço; dei-lhe um pendente, pus brincos em suas orelhas e uma linda coroa em sua cabeça (Ezequiel 16.10-12, NVI, grifo nosso).
Na versão ARC6, da tradução bíblica de João Ferreira de Almeida, Ezequiel 16.14 clarifica o que foi dito acima: “E correu a tua fama entre as nações, por causa da tua formosura, pois era perfeita, por causa da minha glória que eu tinha posto sobre ti, diz o Senhor” (grifo nosso).
Nessas passagens, o próprio Deus deixa evidente que não condena o uso de joias, adornos e maquiagens – que também servem para melhorar a aparência das mulheres. Caso contrário, jamais compararia sua inigualável glória a elementos de embelezamento.
O que, na verdade, não é recomendável às irmãs é o uso exagerado dessas coisas.
Roupas de homem na mulher e vice-versa
No tocante às vestes, Deuteronômio 22.5 diz: “Não haverá trajo de homem na mulher, e não vestirá o homem veste de mulher; porque qualquer que faz isto abominação é ao SENHOR, teu Deus”. Este versículo refere-se possivelmente ao travestismo, que geralmente está ligado a pessoas que se relacionam sexualmente com outras do mesmo sexo. No entanto, como podemos acusar uma mulher cristã brasileira que usa calças compridas de ser homossexual? Será que o fato dela utilizar esse tipo de vestimenta – que, para alguns, é traje masculino – a caracteriza como uma pessoa que não seja heterossexual?
Outro ponto interessante é que, para certas igrejas, a calça comprida deixa a mulher mais atraente. Mas o que dizer de certos vestidos “apertadinhos” e “curtos” que mulheres dessas mesmas igrejas costumam usar?
Diante dessa questão, devemos ficar com o princípio da honra que a Bíblia ensina, isto é, que homens e mulheres cristãos devem se vestir com prudência e vergonha, para que não sejamos culpados de irreverência, tanto pelos de fora quanto pelos irmãos na fé.
O cabelo da mulher
Outro ponto que causa certo desconforto em algumas igrejas é o caso do uso do cabelo curto, pois, para algumas denominações, as mulheres que cortam o cabelo da cabeça estão incorrendo em pecado contra Deus. Mas será que a Bíblia condena as mulheres de não usarem cabelos longos?
Para fundamentar tal proibição, os legalistas de hoje se valem de 1 Coríntios 11.3-15. Todavia, como abordamos anteriormente, não podemos interpretar um texto bíblico sem levarmos em consideração o contexto em que o autor do texto estava inserido. Nesse caso, o apóstolo Paulo, que escreveu para os irmãos que estavam na cidade de Corinto.
É sabido que, em Corinto, as prostitutas gostavam de utilizar cabelos curtos. Por isso, Paulo se viu na responsabilidade de orientar às irmãs a usarem o véu, além de terem o cabelo crescido (1 Coríntios 11.5-6, 15). Isto para diferenciá-las das demais mulheres da cidade. Todavia, não vemos recomendações semelhantes a estas em outras cartas que o apóstolo escreveu.
Considerações
Diante do exposto, esperamos que este texto sirva de esclarecimento para muitos cristãos. Estamos cientes de que existem outras tantas questões tidas como polêmicas entre os crentes. Todavia, nunca é demais discorremos amorosamente sobre assuntos que, sem dúvida, não importantes, pois, caso não sejam trabalhados de forma sábia pelas lideranças de nossas igrejas, podem gerar cristãos despreparados para lidar com as diferenças permitidas pelas Escrituras em nosso meio.
1 PEARLMAN, Myer. Conhecendo as doutrinas da Bíblia. Tradução: Lawrence Olson. São Paulo: Editora Vida, 2006, p. 16.
2 Dicionário Aulete Digital
3 Dicionário Houaiss
4 Dicionário Aulete Digital
5 Nova Versão Internacional
6 Almeida Revista e Corrigida
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