estudos bíblicos
O ministério pastoral feminino não é anti-bíblico e deve ser debatido
Análise sobre as proposições de F.F. Bruce e a soberania do Espírito Santo sobre o tema.
Não é de hoje que a literatura teológica brasileira deixa a desejar em alguns assuntos que são de extrema importância para as discussões atuais. Um exemplo disso é de bons livros que façam uma abordagem sólida, consistente e bem estruturada do ministério pastoral das mulheres.
Por anos, isso prejudicou o relacionamento entre as visões divergentes e contribuiu para que o diálogo sobre esse tema fosse raro em nosso país. Sem falar que quando esse debate acontece, geralmente acaba sendo desproporcional por inúmeras razões.
Primeiramente, há muitos mitos e falácias envolvendo esse tema. Segundo, há uma desproporção de obras em nossa língua sobre o tema. Por exemplo, há dezenas de livros escritos ou traduzidos de autores nacionais e estrangeiros contra a ordenação feminina, porém poucos ou quase nenhum a favor.
E parte dos poucos que existem, são de viés progressista ou feminista (posição que não adoto), o que acaba bloqueando ainda mais o diálogo. O resultado disso é que muitos que são contra o pastorado feminino, usam argumentações do tipo: “Só se ordena mulheres por conta da invasão do feminismo na igreja” (quando a verdade é que muito antes do feminismo surgir enquanto movimento ideológico, mulheres já eram ordenadas em igrejas pentecostais e de tradição de santidade).
Ou outros como: “Não há teólogos sérios e conservadores que defendem o ministério pastoral de mulheres.”
Nesse aspecto, teólogos norte-americanos estão um passo à frente de nós, já que há muitos livros escritos por teólogos sérios que são a favor, bem como a presença de uma maturidade entre os debatedores que divergem entre si em obras acadêmicas, mas que se sentam juntos para tomar café, ou que prefaciam os livros uns dos outros.
Neste artigo, gostaria de conversar com um gigante: F.F. Bruce. Conhecidíssimo no mundo acadêmico, Bruce é respeitado e tem prestígio entre os brasileiros (tanto pentecostais como reformados), contudo, o que poucos sabem, é que ele, junto com outros teólogos sérios como Roger Olson, Stanley Horton, Gordon Fee, Craig Keener, Kenneth Bailey, Roger Nicole, N.T Wright, Ben Whitherington III, Grant Osborn, Stanley Grenz, Eddie Hyatt e vários outros, era a favor do ministério pastoral feminino (ou pelo menos não tinha nada contra).
Pois bem, qual contribuição ele nos deixou sobre esse assunto? O que ele pensava? É o que veremos a partir de agora! Vale lembrar que meu objetivo não é usar do argumento da autoridade teológica para lhe convencer de que ordenação feminina é bíblica, muito menos impor o pensamento do Bruce na mente dos leitores, mas apenas mostrar como podemos dialogar seriamente sobre assunto, sem criar espantalhos sobre quem pensa diferente de nós. Boa leitura!
Humildade para tratar do tema
Há algumas décadas, Bruce foi questionado pelo grande Scot McKnight sobre esse assunto. Nas palavras do McKnight: “Perguntei a ele sobre as mulheres na igreja. Minha pergunta era algo como: “Professor Bruce, você acha que as mulheres deveriam ser ordenadas?”. Sua resposta lembrarei para sempre.
Ele disse: “Não ligo muito para a ordenação. Mas o que posso dizer com relação ao exercício do ministério de mulheres na igreja é o seguinte: sou a favor de tudo o que traga liberdade na igreja. Sou a favor do que quer que traga a liberdade do Espírito na igreja de Deus.” (McKnight, Gálatas , Locais 5804-5807 do Kindle)
Em primeiro lugar, a resposta do Bruce nos ensina que a questão da ordenação não é mais importante que o tema da liberdade do Espírito Santo na igreja. Bruce traz o assunto para o rumo certo e pontua algo que os igualitaristas observam sabiamente: A liberdade do Espírito.
Sem dúvida, é impossível falar sobre esse assunto, ignorando Gálatas 2.28, onde é dito que em Cristo, não há homem, nem mulher (NVI). Certamente, isso não quer dizer que em Cristo, homens deixam de ser homens e mulheres não são mais mulheres, mas sim que na Nova Aliança, homens e mulheres compartilham o mesmo status diante de Deus (no aspecto salvífico e social). Isto também significa que homens (escravos) e mulheres podem compartilhar e executar papéis sociais e religiosos que noutro tempo lhes eram negados.
É claro que há pessoas que não entendem o texto dessa forma, e o veem como tratando apenas da nossa condição salvífica perante Deus. Contudo, aqui cabe uma reflexão do Bruce quando comenta Gl 3.28:
“Se um gentio pode exercer liderança espiritual na Igreja tão livremente quanto um judeu, ou um escravo tão livremente quanto um cidadão, por que não uma mulher tão livremente quanto um homem?” (Bruce, Galatians p. 190).
A pergunta de Bruce relê o texto bíblico como trazendo implicações não somente a respeito da nossa condição soteriológica perante Deus, mas também social e ministerial. Afinal, questões espirituais refletem nas sociais e em Cristo, somos chamados para mudar e influenciar gradativamente este mundo no qual vivemos hoje.
Gálatas 3.28 é a carta magna do Igualitarismo e nos leva a pontuar a seguinte questão: antes de perguntarmos se a mulher pode ser pastora, precisamos fazer a seguinte pergunta: qual a condição das mulheres perante Deus na Nova Aliança? “A esta altura do campeonato”, já nos cabe aqui fazer uma rápida distinção entre o feminismo e o igualitarismo. No feminismo, a mulher é quem diz qual é o seu lugar na religião e na sociedade. No igualitarismo, quem diz quem ela é e quais papéis ela pode exercer é o próprio Deus!
A soberania do Espírito
Bruce não somente tratou desse tema falando acerca da liberdade do Espírito, mas também da própria soberania Dele. Nas suas palavras:
“Um apelo aos primeiros princípios em nossa aplicação do Novo Testamento pode exigir o reconhecimento de que, quando o Espírito, em seu soberano bom prazer, concede dons variados a crentes individuais, esses dons devem ser exercidos para o bem-estar de toda a Igreja. Se ele manifestamente reteve os dons de ensino ou liderança de mulheres cristãs, então devemos aceitar isso como evidência de sua vontade (1 Cor. 12:11 ). Mas a experiência mostra que ele concede esses e outros dons, com ‘consideração inconfundível’, a homens e mulheres – não a todas, é claro, nem a todos os homens. Sendo assim, não é satisfatório nem confortável nesta questão do ministério das mulheres, um lugar onde elas podem orar e profetizar, mas não podem ensinar ou liderar.” F.F Bruce, “Women in the Church: a Biblical Survey, Christian Brethren Review 33 (1982), 7-14, 11-12.
O raciocínio do Bruce é simples: se Deus concede dons de ensino e liderança para as mulheres, é porque é da sua vontade que as mulheres ensinem e liderem na igreja. Não faz sentido Deus conceder o dom de pastora à uma mulher e ela não poder exercer esse dom formalmente na congregação, se existir um ofício formal que reúna as atividades pastorais bem como propiciem uma oportunidade para desenvolver o carisma concedido do alto.
Esse argumento do Bruce também nos leva para outro ponto: Não podemos pensar que as igrejas que ordenam mulheres o fazem apenas por mero pragmatismo. É claro que nem tudo que dá certo, é certo (do ponto de vista teológico), porém, o que devemos realmente focar nessa questão é noutra pergunta: Porque é que dá certo?
Certamente, essa pergunta teológica tem uma resposta adequada: Porque o soberano Espírito de Deus não somente conta com as mulheres para tais funções, como também as dotou com dons e as levanta em tempo oportuno para edificação do seu corpo. Nesse caso, a experiência está à disposição para verificar o que a teologia formula. Não há conflito entre um e outro, apenas um relacionamento mútuo.
Colocando as cartas na mesa
Contudo, este grande teólogo foi menos tímido em suas respostas numa entrevista que concedeu ao W. Ward Gasque em sua casa na Inglaterra.
Vamos agora colocar em formato de catecismo sua abordagem sobre o tema:
1. Em Cristo, homens e mulheres podem exercer as mesmas funções na igreja
GASQUE: Como isso se aplicaria ao papel das mulheres?
BRUCE: O ensinamento de Paulo é que, no que diz respeito ao status e à função religiosa, não há diferença entre homens e mulheres.
GASQUES: E na prática? Ele não limita o papel das mulheres na liderança e no ensino na igreja, e na liderança na sociedade?
BRUCE: Não. Se considerarmos o lugar que as mulheres têm no círculo de Paulo, ele parece não fazer nenhuma distinção entre homens e mulheres entre seus companheiros de trabalho. Os homens e as mulheres recebem elogios por sua colaboração com ele no ministério do evangelho, sem nenhuma sugestão de que exista uma sutil distinção entre um e outro em relação a status ou função. Qualquer coisa nos escritos de Paulo que possa parecer contrária a isso, deve ser vista à luz do impulso principal de seus ensinamentos e deve ser encarada com um escrutínio bastante crítico.
2. O sacerdócio de todos os santos nivela todos homens e mulheres perante Deus
GASQUES: A tradição de sua igreja [os Irmãos de Plymouth] não tem ordenação formal para homens ou mulheres. No entanto, se você estivesse em uma igreja que fez uma distinção entre clérigos e leigos, apoiaria a ideia de que mulheres, assim como homens, deveriam ser ordenadas como pastoras e até bispas?
BRUCE: O ponto é que eu não podia aceitar uma posição que faz uma distinção de princípio no serviço da igreja entre homens e mulheres. Meu próprio entendimento do sacerdócio cristão é bem diferente do entendimento que domina grande parte da discussão atual sobre o assunto. Se, como os cristãos evangélicos geralmente acreditam, o sacerdócio cristão é um privilégio no qual todos os crentes compartilham, não há razão para que uma mulher cristã não deva exercer seu sacerdócio nos mesmos termos que um homem cristão.
3. Passagens que aparentemente proíbem mulheres de exercer ensino e liderança sobre os homens são conflituosas e situacionais
GASQUES: Como você interpreta 1 Timóteo 2: 9-15 que sugere que as mulheres não devem ensinar?
BRUCE: Não tenho muita certeza se I Timóteo 2 foi escrito por Paulo. Mas mesmo que seja tomada como uma declaração escrita pelo próprio Paulo, é apenas uma declaração de uma prática em um determinado momento.
GASQUES: Então você não consideraria isso uma lei canônica para a igreja cristã de todos os tempos.
BRUCE: Não. Acho que, quando você olha para a história cristã, observa uma tendência de escolher os regulamentos da igreja nas Epístolas Pastorais e escolher entre os preceitos que foram adotados como lei canônica permanente e os que foram deixados de lado como sendo apenas para essa época específica.
GASQUES: Como você responde às pessoas que dizem que você está fazendo a mesma coisa, escolhendo entre as várias doutrinas do Novo Testamento, usando uma vertente do ensinamento de Paulo para deixar de lado outra vertente da tradição paulina?
BRUCE: Se há alguma substância nessa crítica, a parte que eu estou escolhendo é a parte que contém os princípios fundamentais dos ensinamentos de Paulo à luz dos quais essas outras passagens devem ser entendidas.
GASQUES: E quanto a 1 Coríntios 14: 34-35, onde Paulo sugere que as mulheres fiquem quietas na igreja?
BRUCE: No mesmo capítulo, ele indica certas ocasiões em que os homens devem ficar quietos ou em silêncio na igreja também! Minha opinião sobre 1 Coríntios 14: 34-35 é muito semelhante à expressa por Gordon Fee em seu recente comentário [no Novo Comentário Internacional sobre o Novo Testamento (Eerdmans, 1987)], a saber, que a evidência textual lança dúvidas sobre a autenticidade das palavras “que as mulheres mantenham silêncio nas igrejas”.
Mas, mesmo que façam parte do texto original da carta de Paulo, elas têm relevância apenas para a profecia na igreja, onde as mulheres são aconselhadas a não questionar publicamente e vocalmente a interpretação das declarações proféticas. Na maioria de nossas igrejas hoje, não temos declarações proféticas do tipo previsto em 1 Coríntios 14. Portanto, a aplicação dessa liminar negativa não se aplica.
Em geral, onde existem opiniões divididas sobre a interpretação de uma passagem paulina, é muito mais provável que a interpretação que segue a linha da liberdade seja fiel à intenção de Paulo do que aquela que cheira à escravidão ou legalismo.
GASQUES: E sobre o uso de Paulo do termo kephale [cabeça] em 1 Coríntios 11:3, onde se diz que o homem é a cabeça da mulher, e em Efésios 5:23, onde o marido é descrito como chefe de sua esposa? Isso não implica subordinação das mulheres aos homens?
BRUCE: Não. Isso implica que a cabeça é a fonte do ser da outra parte em questão. Paulo está se referindo à história de Gênesis de Eva sendo formada do lado de Adão. Nesse sentido, o marido era a fonte do ser da esposa. Isso sugere prioridade em termos de existência, mas não o contrário.
A entrevista completa do Bruce pode ser lida aqui: www.cbeinternational.org/resource/article/priscilla-papers-academic-journal/saint-paul-apostle-freedom-women-and-men.
Conclusão
Os prós e contras a respeito do ministério pastoral feminino já existiam nos dias do F.F. Bruce. Como sempre à frente do seu tempo, esse gigante nos antecipou muitos dos argumentos que hoje são usados pelos igualitaristas na academia. É claro que nem todos os igualitaristas concordam em todos os pontos com ele.
Eu, por exemplo, trago em meu livro: “As Bases Bíblicas do Pastorado Feminino” , pelo menos, três alternativas interpretativas que podemos abraçar sobre o texto de 1 Coríntios 14.34-35. Mas, no geral, suas respostas nos ilustram o seguinte fato: Longe de ser superficial, esse debate é importante.
Segundo, a questão do texto-prova deve ser trabalhada sobre o prisma de princípios, terceiro, esse tema, apesar de ser secundário e periférico, não é essencial e portanto, quem abraça uma ou outra posição não pode ser considerado um herege ou alguém anti-bíblico.
Quarto, a abordagem do F.F Bruce só nos mostra que esse tema é mais complexo do que imaginavá-mos e que mais vale se curvar à soberania do Espírito Santo, do que às brigas, intrigas e falácias!
Que Deus nos ajude!
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