opinião
“Todo amor é divino”: a trapaça com anuência de um princípio religioso
A (falsa) lógica de um mundo às avessas
Poucas pessoas realmente entendem a relação de uma condicional. Quando se coloca uma condição, como “Se tiver a condição P, então terei a condição Q”, quer se dizer que, se tiver P, então se tem uma condição suficiente numa relação com Q, que é uma condição necessária para P.
Por exemplo: Se é mãe, então é mulher. Ora, ser “mãe” (P) é condição suficiente para que possa dizer que alguém é “mulher” (Q) e ser “mulher” (Q) é condição necessária para ser “mãe” (P). As pessoas não compreendem bem as condicionais porque, como são dispositivos mais estudados na lógica formal, não se pensa muito na verdade das premissas: na lógica formal, como estudada em sala de aula, o que importa – como sugere o nome – é a forma, não o conteúdo. Por isso, a incompreensão de muitos, na prática diária.
Aqui, o(a) leitor(a) já deve ter percebido que chamo a atenção para o conteúdo das frases que ecoam hoje, posando todas de verdadeiras. Na lógica formal, o valor de verdade de uma frase ou proposição influenciará, sim, numa conclusão argumentativa; mas só os mais experientes em lógica entenderão o que isto quer dizer.
Normalmente, na linguagem falada, a chamada comum, a lógica que impera é a informal, ou seja, o conteúdo importa mais do que a forma. Curiosamente, é onde os maiores absurdos acontecem! Por não darmos o devido valor à linguagem falada, à comum, ao seu conteúdo, absurdos têm se tornado cada vez mais corriqueiros, mais presentes no dia a dia e parece-me que o objetivo é justamente esse: que os contrários se insurjam como iguais e que ninguém entenda ninguém.
Explico: se digo que “todo amor é divino”, quero obviamente dizer algo com isso. Como uma frase desta está muito na moda, é fundamental que se esclareça também qual é a intenção com que se diz a frase. Quer se dizer que “todo” amor é divino? Quer se dizer que “Deus é amor” (como está escrito em 1 Jo. 4:8)? Quer se dizer que “o amor é divino, porque é um sentimento divino”? O que se quer dizer?
Observe que, como a coisa “passa” com facilidade, pois uma premissa como essa pode ter várias interpretações e as pessoas acham “chato” raciocinarem sobre o que se quer dizer com tudo o que se diz, então coloquemos aquela frase “todo amor é divino” numa condicional, como o modelo do início: “Todo amor é divino” equivale dizer que “Se é amor, então é divino”. Ah, a coisa começa a clarear!
Quer se dizer com essa frase que “Se é amor (P), então é divino (Q)”. Ou, em outras palavras: amor (P) é uma condição suficiente para que se entenda que o sentimento é divino (Q) e o fato de ser divino (Q) é condição necessária para que o sentimento seja configurado como amor (P). Observe que, o que em princípio passou despercebido como sentido estrito, ao ser apresentado numa forma condicional, explicita-se e o sentido vem à tona: a pessoa que defende uma frase dessas afirma, em outras palavras, que o “todo amor é divino”.
Em primeiro lugar, observe que isto é diferente de se dizer que “Deus é amor”, como em 1 Jo. 4:8. Nesta frase, associa-se a pessoa de Deus ao adjetivo amor, como um constituinte de sua própria estrutura. Está se dizendo que “Se é Deus, então é amor” e não “Se é amor, então é Deus”, compreende? Aqui, a “ordem dos tratores altera o viaduto”! Não são a mesma coisa!
A frase em questão (“Se é amor, então é divino”) é uma frase que vem imbuída de significação que atende a interesses do jogo sócio-político atual. É uma estratégia disfarçada para que se justifique “qualquer tipo de amor” e mais: com a anuência de um princípio religioso, isto é, que envolva a pessoa de Deus. Isto é trapaça.
Quando se defende a proposição bíblica (“Deus é amor”) está se dizendo que Deus é associado (ontologicamente) àquele que é “o maior dos dons” ou o “mais excelente”, conforme pontua o apóstolo Paulo, em 1 Co. 13. Deus é o que há de mais nobre em todo o universo ou aquilo mesmo que tornou o próprio universo possível: seu amor.
Entender a frase joanina não significa banalizar o amor, associando-o a qualquer capricho humano, mas, pelo contrário, revelar a classe especial do próprio ser divino, que se caracteriza por ser, em plenitude, o que somos em parte: nós amamos também, temos esta capacidade, mas não somos amor. Somos também, como criaturas falhas e finitas: ódio, amargura, desejo, vingança, ambição, desprezo, indiferença, ingratidão, desespero e até ambiguidade. Tudo o que Deus não é.
Concluo, afirmando que precisamos ser muito mais criteriosos com o que admitimos e propagamos, haja vista estarmos em um mundo que crê, evoca, defende e pratica antes de buscar qualquer justificação para o que se creu, evocou, defendeu e praticou. É um mundo às avessas, onde não importa muito, para muita gente, se algo é fundamentalmente certo ou não, verdadeiro ou falso.
O que importa é que a justificativa se amolde à crença e à prática, o que retira do cotidiano toda inteligibilidade. Não vivemos em um mundo que faz sentido, coerente, sequer plausível, mas caótico e invertido. Nunca foi tão urgente voltarmos à sanidade dos pensamentos simplesmente verdadeiros e verdadeiramente simples. Nunca foi tão urgente voltarmo-nos à verdade, que dá sentido à própria lógica.
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