opinião
A morte do museu nacional
É da maior importância que os cristãos tenham uma concepção bíblica da relação do homem com a cultura.
Ontem o Brasil perdeu o Museu Nacional, criado em 1818 por D. João VI e abrigado desde 1892 no Palácio de São Cristóvão, na Quinta da Boa Vista (Rio de Janeiro), o mesmo Palácio que servira de residência à Família Real até 1889 e que recepcionou a Assembleia Nacional Constituinte responsável pela primeira Carta Magna Republicana, a de 1891.
Tratava-se da primeira instituição científica do Brasil, um dos mais importantes museus de história natural das Américas e um legado da Monarquia. Num conjunto de 20 milhões de itens, havia, por exemplo, antiguidades egípcias; artefatos indígenas; o crânio de “Luzia”, o mais antigo fóssil humano encontrado nas Américas; o meteorito Bendegó, achado na Bahia em 1784; insetos cuidadosamente catalogados; obras raras – enfim, uma imensa riqueza histórica e científica que perdemos para sempre.
Estou realmente triste neste dia, e muito porque a morte do Museu Nacional retrata fielmente o Brasil, um país desmemoriado, que esquece coisas que aconteceram na década passada; que desconhece a importância, não só da educação, mas da cultura, da estética, da música que presta, do pensamento e do conhecimento. Esse é um país que confunde arte com entretenimento, que financia bobagens “culturais” enquanto seus palácios e casarões desmoronam ao fogo ou debaixo d’água.
Filho de uma poetisa e professora formada em Biologia (em sua época, o curso chamava-se “História Natural”), aprendi desce cedo o valor da leitura, do estudo, da cultura e da história. Minha esposa, que é agrônoma e mestra em Biologia, sempre me fala sobre o valor da pesquisa científica no campo das ciências biológicas, algo que se fazia no Museu Nacional, mas que infelizmente morreu com a destruição pelo fogo.
A Família Imperial contribuiu para o desenvolvimento científico brasileiro. D. Pedro II era um homem culto que gostava de viajar e conhecer civilizações antigas. Talvez seja ele o estadista mais importante de nossa história, e mais ilustrado e cívico do que qualquer presidente brasileiro.
O apreço que D. Pedro II tinha pelo estudo me faz recordar o rei Salomão, sobre o qual está escrito:
“Deu também Deus a Salomão sabedoria, grandíssimo entendimento e larga inteligência como a areia que está na praia do mar. Era a sabedoria de Salomão maior do que a de todos os do Oriente e do que toda a sabedoria dos egípcios. Era mais sábio do que todos os homens, mais sábio do que Etã, ezraíta, e do que Hemã, Calcol e Darda, filhos de Maol; e correu a sua fama por todas as nações em redor. Compôs três mil provérbios, e foram os seus cânticos mil e cinco. Discorreu sobre todas as plantas, desde o cedro que está no Líbano até ao hissopo que brota do muro; também falou dos animais e das aves, dos répteis e dos peixes. De todos os povos vinha gente a ouvir a sabedoria de Salomão, e também enviados de todos os reis da terra que tinham ouvido da sua sabedoria” (I Rs 4.29-34).
Conhecemos a sabedoria de Salomão manifesta na filosofia de Eclesiastes, na rica poesia de Cantares, na sentença que deu origem à expressão “decisão salomônica”, bens de um patrimônio imaterial que a Bíblia reconhece e valoriza, e que participam do grande tesouro da civilização judaico-cristã.
Meus caros, estamos muito, muito aquém de um rei Salomão ou de um D. Pedro II. Vivemos uma época de descaso para com o que de fato importa. Vivemos o que Theodore Dalrymple chama de “cultura do declínio”: o que é bom não vem a público, o que é ruim toma conta das mentes e corações.
Na periferia de nossas cidades é comum ouvir-se o som de funks e pagodes da pior qualidade, alguns deles mais próximos do conceito de ruído e bem longe do que se pode considerar na categoria de música – são pseudo-canções que, em batidas irritantes e repetitivas, exibem um discurso sofrível de rebaixamento da mulher, de empobrecimento do sexo, de ode à violência, de raiva contra a autoridade policial, de desprezo pelas instituições sociais.
Em contextos como esse quem mais sofre são os próprios moradores, cujos filhos menores se veem obrigados a conviver com palavras de baixíssimo calão, imersos numa cultura que tem na anarquia um valor.
Se o leitor apresentar o parágrafo anterior a um amigo “antenado” ou a um professor esquerdista de Ciências Humanas é bem provável que eu seja tachado de “racista”, “fascista” ou “preconceituoso”, mas deixe eu lhe dizer uma coisa: seus amigos antenados e seus professores esquerdistas de Ciências Humanas dificilmente conhecem pobres de verdade (no máximo, o porteiro do prédio e a diarista), porque se limitam a enxergar os pobres à distância, como uma simples categoria ideológica, e não como pessoas de carne e osso.
As classes pobres são, na visão desses sonhadores utópicos, um conjunto impessoal de oprimidos da sociedade, e não indivíduos com diferentes percepções de mundo. E é assim que, mesmo sem conhecer os bairros periféricos de sua cidade, esses heróis socialistas da esquerda caviar reivindicam para si o direito de falar em nome da respectiva população.
Também é assim que esses moderninhos, enquanto ouvem música erudita, rock internacional ou MPB, defendem que as classes menos favorecidas devem mesmo gostar é de bater lata ou de frequentar bailes de funk carioca, porque – pensam eles – a cada classe social corresponderia naturalmente um tipo de cultura.
Vai nesse mesmo sentido aquele pensamento grotesco de que na linguagem não existem certo e errado, o que só tem o efeito prático de distanciar os mais pobres do mercado de trabalho e dos espaços mais prestigiados do poder burocrático, pois “nóis pega o peixe” pode até soar bonitinho entre os politicamente corretos, mas não aprova no vestibular.
Tal discurso progressista é hipócrita, falacioso e insensível para com as reais necessidades das pessoas, as quais são manipuladas e usadas em plataformas políticas de suposta defesa de minorias, o que produz, na realidade, a perpetuação da pobreza – é que, para os socialistas, é importante manter parcela da população na condição de pobre a fim de que se preserve a propaganda contra o liberalismo econômico, além de se reservar, com isso, um grande contingente eleitoral sempre dependente de auxílio do governo e de organizações aparelhadas pela esquerda.
A antropologia cristã não se ocupará apenas daquilo que constitui o Homem como ser (espírito, alma e corpo), mas atentará igualmente para a linguagem, a ética, o direito, a arte, a indústria, a cooperação, a convivência social – ou seja, a cultura em seu sentido mais amplo.
Entre as muitas coisas cujo início vem relatado no Livro de Gênesis, temos justamente a produção cultural. E ao dizer “não é bom que o homem esteja só” (cf. Gn 2.18), Deus estabelecia o princípio gregário, que expressa a necessidade e capacidade humana de relacionar-se em sociedade.
É da maior importância que os cristãos tenham uma concepção bíblica da relação do Homem com a cultura, porque isto agrada a Deus, já que partiu do Criador o desígnio de que a humanidade deveria ser definida também pela prerrogativa singular de dominar o mundo (cf. o chamado “mandato cultural” em Gn 1.26-28).
Veremos, com isso, que adotar ou produzir uma cultura superficial, medíocre, de baixo nível é algo que entristece a Deus, não sendo indiferente à Sua sabedoria e inteligência. Acreditar que Deus não se importa com isso é manter uma cosmovisão dualista, que enxerga como agradáveis ao Criador apenas as coisas relativas ao serviço sagrado, o que, no entanto, contraria a doutrina de que o mundo foi criado por Deus, e de que ao Homem foi dada criatividade para administrar e conferir à realidade um senso de organização.
A Igreja brasileira precisa lembrar da relevância de seu papel de disseminação de uma cosmovisão cristã, protestante e evangélica, que prega a redenção do Homem em Cristo e também a restauração da cultura para a glória de Deus. Todavia, será impossível cumprirmos essa missão se mantivermos em nossa própria cultura evangélica o apreço pelo emocionalismo, pelo ridículo, pela ignorância, pela gritaria, pela negligência para com a leitura e o estudo, enquanto promovemos uma “teologia de ouvido”, um arremedo de pregação e uma liturgia que emula programas de auditório.
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