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“Dois papas”: Um ensaio sobre culpa e “redenção”

O progressismo pós-moderno: uma nova religião concebida para prevalecer sobre todas as outras

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Cena de Dois Papas. (Foto: Peter Mountain / Netflix)

Ao começar este artigo sobre o filme “Dois Papas”, do diretor brasileiro Fernando Meirelles, tenho em mente o “Dois tapas”, título espirituoso com que o jornalista Luciano Trigo denominou seu texto sobre o episódio em que o Papa Francisco repreendeu uma senhora que segurava seu braço no derradeiro dia de 2019. A falta de paciência do suposto sucessor de Pedro vem recordar que ali se acha apenas um homem…

Este artigo, porém, não se refere ao Francisco de carne, osso e impaciência, mas, sim, àquele que na película vem a ser canonizado como um justo defensor das causas certas, enquanto se retrata Bento XVI como o frio intelectual a quem se concede, por benevolência, uma dose de humanidade e humor.

Destaco, inicialmente, a presença forte do extraordinário Anthony Hopkins no papel de Joseph Ratzinger/Bento XVI; a excelente caracterização de Jonathan Pryce como Jorge Bergoglio/Francisco, associada a uma interpretação que remete abundantemente ao olhar emotivo, ao sorriso sem jeito e às maneiras do papa argentino (Pryce, ator inglês, consegue pronunciar seu idioma nativo como se fosse um latino-americano tentando falar a língua de Shakespeare); a bela fotografia, auxiliada pelas exuberantes visões paisagísticas e arquitetônicas de Roma e do Vaticano; a boa costura de diálogos que, embora fictícios, parecem representar o pensamento de ambos os protagonistas, e que teriam sido colhidos de discursos, entrevistas e escritos.

Tudo isso torna o filme interessante, especialmente para os que têm curiosidade sobre temas misteriosos como conclaves, os motivos da renúncia de Bento XVI, escândalos da Igreja Católica, a intimidade de pontífices e outros assuntos relacionados ao Vaticano. Entretanto, mais interessante ainda é avaliar o argumento que subjaz ao roteiro e direção da película, o que permite perscrutar não somente o que se passa na mente dos que a produziram, mas uma espécie de síntese do espírito de nossa época.

Antes de continuar, vale dizer que não existiram os encontros principais que o filme exibe entre o Papa Bento XVI e o então cardeal Jorge Mario Bergoglio: na ficção, um Bento XVI abatido pelo escândalo “Vatileaks” convida Bergoglio para conversar, em 2012, sobre o pedido de aposentadoria deste, e indagar se aquilo não seria entendido como um protesto contra a Igreja e seu conservadorismo.

Trava-se, então, um diálogo teológico-filosófico, ora rude, ora mais ameno, em que Bergoglio chega ao ponto de afirmar que “Deus muda, ele evolui” – uma heresia que seria capaz de sepultar, na mente de um teólogo cristão conservador, qualquer esperança naquele cardeal portenho. No entanto, apesar de dizer que não concordava com nada daquilo que Bergoglio dizia, o Bento XVI do filme oscila entre uma irritação dogmática e a suposição de que a Igreja precisava justamente de um pontífice reformador, como Bergoglio lhe parecia ser.

Essa é a grande contradição do filme: o mesmo Bento XVI que se assusta com as heresias disparadas pelo jesuíta argentino é aquele que nele enxerga um bom sucessor. Pinta-se, assim, um papa alemão articulador e político, que agora planeja arranjar um sucessor como antes cuidara de sua própria eleição.

É mesmo estranho que um Ratzinger supostamente tão ambicioso, como retratado no filme, viesse, menos de oito anos depois, a renunciar ao cargo simplesmente por entender que sua visão de mundo e estilo não pareciam adequados ao momento de crise. Essa representação da figura de Bento XVI, penso eu, não lhe faz justiça, além de ser contraditória e baseada no estereótipo do intelectual sistemático, tradicionalista e vaidoso que não acompanhou os “novos tempos”.

A seu turno, surge uma verdadeira canonização de Francisco: autêntico, sensível, amante do futebol, amigo dos pobres, piadista, “gente como a gente”, capaz de se encantar por uma mulher, conhecedor e apreciador das coisas comuns da vida – de plantas a pizzas. Como concessão, devota-se a Bento XVI um aspecto humano: pitadas de humor, desabafos, talento musical. Predomina, contudo, um relato hagiográfico de Francisco, o papa progressista da nova era da humanidade, ao passo que Bento XVI é a velha ordem, a representação do sistema que precisa ser renovado pelo humor do Terceiro Mundo e impulsionado pela energia dos novos tempos.

A dicotomia entre Bento XVI e Francisco não foi totalmente inventada: ela é uma síntese da Igreja Católica e, enfim, da nossa época. O que se acrescenta ideologicamente a essa realidade é uma clara predileção pelo progressismo teologicamente superficial do jesuíta portenho, de sorriso terno, olhos marejados pela dor do próximo e uma vida de simplicidade e devoção ao que é “justo”, mas com uma ideia absolutamente débil e romântica sobre a realidade econômica e social. Em contraste, lá está a sombra de um velho alemão que pronuncia um latim impecável, que está demasiadamente preocupado com doutrina oficial e que precisa ser lembrado de que por trás daquelas vestes sacerdotais de “Vigário de Cristo” ainda remanesce uma pessoa humana.

No cerne, o filme coloca Bento XVI e Francisco como homens motivados pela culpa: o primeiro quer renunciar por não ter conseguido tratar satisfatoriamente dos abusos sexuais e vida dupla do padre mexicano Marcial Maciel (1920-2008), fundador dos Legionários de Cristo; o segundo é atormentado pelas recordações do tempo da ditadura argentina, em que dois jesuítas foram presos e torturados depois de perderem a proteção eclesiástica em razão de uma disciplina imposta pelo seu chefe, o próprio Bergoglio.

Tendo sido um chefe de jesuítas identificado popularmente com o regime, e que deitara fora livros marxistas das bibliotecas de sua ordem religiosa, Bergoglio se vê, com a redemocratização, compelido a se refugiar a um vida de oração e ministério eclesiástico mais modesto, período em que se aproxima do povo pobre e de uma visão de mundo bem diferente daquela que abraçava anteriormente. Eis a sua redenção: a causa progressista!

Tal circunstância se torna fácil de perceber quando Bergoglio diz a Bento XVI que cada ação positiva por ele praticada, como evitar despejos, era uma forma de fazer o que seus colegas jesuítas perseguidos tinham sido impedidos de realizar. Assim, a “virada” ao progressismo teria sido ensejada pelo agudo sentimento de culpa, o que é frequentemente o que acontece, embora, com certeza, não seja isso o que pensa alguém como o diretor Fernando Meirelles – enquanto procura exaltar a “redenção” política rumo às virtudes do progressismo, o filme aponta a culpa na raiz de um papa “bonzinho”.

Mas Bento XVI também precisa ser exculpado, e Bergoglio veio de Buenos Aires para o redimir com piadas fora de hora, conversa franca, pizza na Sala das Lágrimas e passos de tango. Nesse contexto, o “Eu o absolvo” dito por Bergoglio a Bento XVI soa mais “necessário” do que o “Eu o absolvo” dito por Bento XVI a Bergoglio, porque este, na verdade, já tinha sido redimido pelas virtudes da justiça social.

É muito significativo e nada casual que um filme humanista sobre uma instituição religiosa milenar venha a ser, na verdade, extremamente “religioso”, porque é isso mesmo o que o progressismo pós-moderno vem a ser: uma nova religião concebida para prevalecer sobre todas as outras, uma religião civil e política cujas virtudes seculares seriam pretensamente suficientes para dar ao Homem o Bom, o Belo e o Justo, sem deixar de lado a capa do transcendente e do espiritual.

Vivemos, de fato, a era de supervalorização da imagem em detrimento da substância, do subjetivo em detrimento do objetivo, e das intenções em detrimento da eficácia. A completa falta de carisma de Bento XVI é demonizada na mesma proporção em que se confunde o politicamente correto de Francisco com o conceito de carisma, algo em que João Paulo II era mestre, mas que Francisco precisa lhe “roubar” porque João Paulo II era conservador, e ele, não.

Ministro do Evangelho (ofício de evangelista), da Assembleia de Deus em Salvador/BA. Co-pastor da sede da Assembleia de Deus em Salvador. Foi membro do Conselho de Educação e Cultura da Convenção Fraternal dos Ministros das Igrejas Evangélicas Assembleia de Deus no Estado da Bahia, antes de se filiar à CEADEB (Convenção Estadual das Assembleias de Deus na Bahia). Bacharel em Direito.

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