estudos bíblicos
Sola Scriptura e a indispensável reflexão hermenêutica
“O homem espiritual discerne todas as coisas”. 1 Co. 15a.
Escrever um texto realmente reflexivo é um desafio. Digo isto, a princípio, pois não quero apenas refletir, mas re-flexionar-me, ou seja, dobrar-me para dentro de mim mesmo. Creio que isto é a própria essência de pensar, enquanto que o refletir do primeiro exemplo se tornou reproduzir uma imagem, como um espelho que reflete uma imagem, mas não reflete absolutamente nada de si mesmo.
Esta prática está na raiz de qualquer empreendimento humano que queira lograr êxito, principalmente se houver algum viés intelectual no processo. Vejamos a hermenêutica, por exemplo. Esta é uma ciência teológica com objetos definidos – no caso da teologia é a Bíblia -, e métodos próprios, sistematizados em um conjunto que faz da hermenêutica uma ciência bíblica única. Grosso modo, não existem hermenêuticas, mas a hermenêutica. As divergências interpretativas que transbordam por aí não implicam, necessariamente, na multiplicidade de interpretações verdadeiras, porém evidenciam a confusão hermenêutica que se instaurou, dentre outros motivos, pela falta da genuína reflexão devida em relação ao texto sagrado.
Aqui, enfatizo o poder da re-flexão, pois mais do que mero processo mecânico, a hermenêutica requer que o intérprete se dobre sobre si mesmo, percorrendo o caminho que foi trilhado pelos autores sagrados. Esta tarefa não pode abrir mão do comprometimento espiritual com o próprio processo de escrita bíblica, que para a Igreja é permeado de inspiração. Logo, para entender o texto, sob a perspectiva da inspiração, a mente do autor deve ser de certo modo inspirada pelo mesmo Espírito que inspirou o autor. Analogamente, damos como exemplo um tradutor. Um bom profissional desta área não apenas traduz palavras, frases ou expressões idiomáticas de determinada língua, todavia após um processo reflexivo producente, mescla ideias que se ligam a partir das culturas e línguas envolvidas, em símbolos comuns, isto é, compartilhados pela língua a ser traduzida e para qual irá traduzir.
Desta forma, não nos surpreende que a hermenêutica, que como as ciências da linguagem começou como tarefa essencialmente filosófica, tenha se desenvolvido para um ramo próprio da filosofia e alçado um voo próprio, que conversa e permeia praticamente todos os outros ramos do saber. Na filosofia, como na teologia, tudo é argumentação e esta prática é a em que se apresentam argumentos que serão contrastados e provados. O hermeneuta pode não argumentar com outros como ele, qual um debatedor, mas delibera com quem está tentando traduzir. E só depois de refletir bastante sobre o empreendimento em si, que sintetiza sua experiência linguística com a de quem quer interpretar, o hermenêuta pode dizer que terminou objetivamente seu trabalho. Poucas tarefas humanas exigem maior reflexão.
Assim, admiro-me quando vejo determinados modismos. O que seria, por exemplo, uma “hermenêutica reformada”? Se na essência da hermenêutica, como ciência, está o pressuposto de que sua tarefa se exima dos mais sutis aspectos repetitivos, ambíguos e contraditórios, afim de que os mesmos não interfiram na exatidão devida da tarefa interpretativa, então como se coloca na própria sub-nomenclatura da tarefa hermenêutica algo que, em princípio, lhe vai essencialmente ao encontro? Do mesmo jeito que a expressão “júri imparcial” é redundante, parece-me que o simples fato de se usar as expressões “hermenêutica” e “reformada” em um mesmo título é uma tentativa de se mostrar ao leitor que há uma redundância, ou seja, de que não “não há outra hermenêutica possível que não seja reformada”.
Essa questão não é apenas absurda pelo efeito que provoca, mas principalmente por sua causa. Esta é o resultado de sofisticados processos interpretativos que parecem orgânicos, mas são meramente mecânicos. Explico: não creio que alguns reformadores gostariam de atribuir qualquer sub-nomenclatura às suas tarefas interpretativas, quando as fizeram. Creio que em suas mentes estava presente a ideia de que a interpretação romana, por exemplo, era simplesmente ruim em muitos aspectos. Mas isso não significaria que sua interpretação poderia ser alçada ao patamar do objeto ao qual se dedicaram com tanto esmero, as Escrituras, posto que o olho que olha uma imagem não é a imagem em si.
Não acredito que um hermeneuta genuíno queira ter seu trabalho visto como lente através da qual o texto-alvo seja interpretado, pois com o passar do tempo, a lente pode passar a ser mais importante do que o olho. É precisamente por esse motivo que não existe uma “hermenêutica agostiniana” ou “anselmiana”, ou ainda “scotiana”, mas uma hermenêutica católica, que pode até abafar institucionalmente as vozes discordantes dentro de suas próprias fileiras, mas não transformou a tarefa da interpretação bíblica em uma colcha de retalhos dogmática. Não há uma interpretação arminiana, molinista, calvinista de Romanos 5, por exemplo, uma vez que, se houver, não é mais hermenêutica, é arminianismo, molinismo ou calvinismo. Qualquer sistema teológico provém da Bíblia, nunca a mensura!
No caso do evangelicalismo, os movimentos independentes denominacionais normalmente reclamam para si o status de defensores da interpretação correta, em detrimento de todas as outras, e o que se vê é, na verdade, a majoritária repetição nas “massas” evangelicais das conclusões de alguns doutores da lei, sem o incentivo à análise minuciosa dos argumentos, para que os fieis percorram, por si, os caminhos trilhados pelos escritores sagrados, a fim de que eles próprios adentrem à essência da Palavra, àquilo que, por ser fundamentalmente espiritual, só se discerne espiritualmente.
Confesso que não tenho muitas esperanças de que isso mude neste tempo. Em uma sociedade cada vez mais rápida, insana, vibrante e supérflua, exigir reflexão e, mais especificamente, reflexão hermenêutica necessária para que os textos sagrados ganhem vida não apenas nos ouvidos mas nos corações dos que se lançam à interpretar a Palavra, é esperar demais. Creio que estamos fadados a, de um modo geral, retransmitirmos mecanicamente o que julgamos ser ortodoxia hermenêutica, quando realmente estamos apenas como os torcedores de um time de futebol: sabe-se para qual time se torce, as vitórias, os jogos, as peculiaridades, os títulos, mas não se sabe o porquê de se torcer para aquele time.
A hermenêutica pode ser uma tarefa das mais reflexivas ou irreflexivas. Pode ser absolutamente esplendorosa em seu propósito de revelar verdades ocultas por camadas de prosa e narrativa, ou assumir apenas o estéril papel de se perpetuar uma lente, um filtro que, por mais foco que dê (ou tire!), jamais pode ser confundido com a imagem que tenta focar. Por isso, defendo que não existe uma hermenêutica reformada, ou uma pentecostal, ou metodista, ou anglicana, mas uma hermenêutica, que exige um processo necessário de esvaziamento e desdobramento por parte do hermeneuta para dentro de si mesmo, afim de que se produza algo, quanto à interpretação, que faça jus ao texto que deveria estar sendo o objeto único de estudo, do e para o qual dobram-se as tentativas interpretativas.
Assim, sem se retirar o fundamento, pontos novos surgem sempre, dinamicamente; o edifício da teologia cresce sobre o fundamento, e não estagna! E como isso é possível? Porque incrivelmente a história da Igreja nos mostra que o verdadeiro hermeneuta bíblico, o que reflete e se desdobra no texto sagrado, avança, traduz, argui, convence, persuade e inova, sem jamais apresentar algo que no texto já não esteja.
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