opinião
Teologia Arminiana – Mitos e Realidades
Quero compartilhar com os nossos caros leitores um capítulo do livro “Teologia Arminiana – Mitos e Realidades”, Editora Reflexão, que para nós representa um marco, no que diz respeito às publicações teológicas brasileiras, já que é o primeiro livro a tratar especificamente de teologia arminiana (defesa da bondade divina e do livre arbítrio), sem contar que o Dr. Roger E. Olson, autor do livro, é uma das maiores autoridades, na atualidade, sobre o assunto.
O livro possui 10 Mitos sobre a Teologia Arminiana, isto é sobre de James Arminius e outros teólogos (arminianos), como John Wesley, e é altamente indicado para todos os estudantes, acadêmicos e pesquisadores da teologia.
Espero que gostem. (parte 1 de 2)
(Reprodução e publicação, desde capítulo em específico, neste site em específico, autorizada pela Editora Reflexão)
MITO 4
O cerne do Arminianismo é a crença no Livre Arbítrio
“O verdadeiro cerne da teologia arminiana é o caráter amoroso e justo de Deus; o princípio formal do Arminianismo é a vontade universal de Deus para a salvação.”
PERGUNTE AOS CRISTÃOS MAIS VERSADOS ACERCA do calvinismo e armi- nianismo e eles dirão que o primeiro acredita na predestinação e que o último crê no livre-arbítrio. Assim como muitas opiniões populares concernentes à religião, tal afirmação incorreta não se sustenta. Ela é, no mínimo, equivocada. Muitos calvinis- tas alegam crer no livre-arbítrio. Claro, eles se referem ao livre-arbítrio que é compa- tível com a determinação divina (livre-arbítrio compatibilista). Todos os verdadeiros arminianos creem na predestinação. Claro, eles se referem à eleição condicional em- basada no pré-conhecimento de Deus acerca da fé. Entretanto, apesar destas res- salvas, a assertiva de que todos os calvinistas acreditam na predestinação e não no livre-arbítrio é falsa, assim como falsa é a reivindicação de que todos os arminianos creem no livre-arbítrio, mas não na predestinação.
Talvez a calúnia mais prejudicial disseminada por críticos contra o arminia- nismo seja a de que o sistema começa e é controlado pela crença na liberdade da vontade. Até mesmo alguns arminianos chegaram a acreditar nisso! Mas tal idéia é simplesmente errônea. Não é verdade que o arminianismo é controlado por uma crença a priori na livre agência, assim como também não é verdade que o calvinis- mo é controlado por uma negação a priori do livre-arbítrio.
Cada visão teológica do livre-arbítrio tem bases em compromissos mais essenciais. E, entretanto, até mesmo teólogos perspicazes que não deveriam cometer tais enganos, comumente alegam que o livre-arbítrio mantém uma posição poderosa e controladora no arminianismo. De acordo com o teólogo luterano Rick Ritchie:
“O tema condutor no arminianismo é a crença no livre-arbítrio do homem”1. O calvinista Kim Riddlebarger chama a liber- dade humana de “primeiro princípio” do arminianismo2. Mesmo com toda a pesqui- sa sobre o arminianismo e a retórica conciliadora, os teólogos calvinistas Robert Pe- terson e Michael Williams erram quando escrevem: “O compromisso incompatibilista com a liberdade da vontade como o maior valor e o primeiro princípio da construção doutrinária move o arminianismo a defender que as escolhas e ações humanas não possuem significados caso Deus as dirija por seu poder decretivo”3.
Com todo o devido respeito a estes dois autores e outros que fazem a mesma crítica ao arminianismo, este arminiano precisa refutar tal crítica de maneira ardorosa. Todos os verdadeiros arminianos concordariam com esta refutação. Em primeiro lugar, o compromisso com a liberdade da vontade não é o maior valor ou o primeiro princípio da construção doutrinária arminiana. Este alto posto pertence à visão ar- miniana do caráter de Deus conforme discernido de uma leitura sinótica da Escritu- ra, usando a revelação de Deus em Jesus Cristo como o controle hermenêutico. Os arminianos creem no livre-arbítrio porque o veem pressuposto em todos os lugares na Bíblia e porque ele é necessário para proteger a reputação de Deus. Em segundo lugar, os arminianos não defendem que as escolhas e ações humanas não possuem significado caso Deus as dirija por seu poder decretivo. Na verdade, os arminianos não se opõem à ideia de que Deus “dirija as escolhas e ações humanas.
Todos os arminianos se opõem à crença de que Deus controla as ações humanas – principal- mente as ações más e pecaminosas!” E os arminianos não conseguem enxergar uma maneira de abraçar o determinismo divino (monergismo) sem evitar fazer de Deus o autor do pecado e do mal. Alguns calvinistas (como alguns arminianos) fazem uso de um linguajar mais ameno do que sua teologia exige quando querem frisar um as- pecto que pode ser ofensivo a outros. O que Peterson e Williams deveriam ter escrito é que os arminianos creem que as escolhas e ações humanas não têm significado caso elas sejam controladas de maneira absoluta pelo poder decretivo de Deus. O arminianismo não se opõe à ideia de que Deus dirige as escolhas e ações humanas por intermédio do poder da persuasão.
O arminianismo abraça a ideia de que Deus dirige as escolhas e ações humanas ao fazê-las se encaixarem em seu plano mestre para a história. A única coisa que o arminianismo rejeita, nesta área específica, é que Deus controla todas as escolhas e ações humanas. Os arminianos desejam que seus críticos façam uso de uma linguagem mais clara que, de fato, enfatize as reais diferenças e não confunda os assuntos.
Por que os arminianos se opõem à crença que Deus controla as decisões e ações humanas por seu poder decretivo? Primeiro, vamos ser claros acerca das ra- zões que os arminianos não utilizam ao se opor a esta crença determinista. Não é porque estão encantados por algum compromisso moderno com a liberdade huma- nística; havia arminianos antes da ascensão da modernidade (e do Iluminismo), e havia cristãos no livre-arbítrio incompatibilista bem antes de Armínio! Os primeiros pais gregos da igreja acreditavam na liberdade da vontade e rejeitavam o determi- nismo de qualquer tipo. Segundo, não é porque não acreditam no poder decretivo de Deus.
Os verdadeiros arminianos sempre acreditaram que Deus ordena e até mesmo controla muitas coisas na história; eles afirmam a liberdade e onipotência de Deus. Se Deus escolhesse controlar cada decisão e ação humana, ele o faria.
Em vez disso, o motivo real pelo qual os arminianos rejeitam o controle divino de toda escolha e ação humana é que isto faria de Deus o autor do pecado e do mal. Para os arminia- nos, tal controle faria de Deus, no mínimo, moralmente ambíguo e, no pior, o úni- co pecador. Os arminianos reconhecem que os calvinistas não afirmam que Deus é moralmente ambíguo ou mal! Alguns, todavia, de fato acreditam que Deus é o autor do pecado e do mal.
O teólogo calvinista Edwin Palmer defendeu que Deus, de fato, preordena o pecado: “A Bíblia é clara: Deus ordena o pecado”. “Embora todas as coi- sas – descrença e o pecado inclusos – procedam do eterno decreto de Deus, o homem ainda é responsável por seus pecados”4. É por isto que os arminianos se opõem à crença no determinismo exaustivo divino de qualquer forma; o determinismo não consegue evitar fazer de Deus o autor do pecado e do mal, e a conclusão lógica deve ser a de que Deus não é plenamente bom, ainda que os calvinistas e outros moner- gistas discordem5.
O arminianismo inicia com a bondade de Deus e termina ao afirmar o livre–arbítrio. O livre-arbítrio é resultado da bondade e a bondade está embasada na re- velação divina; Deus revela a si mesmo como incondicional e inequivocamente bom, o que não exclui a justiça e a retribuição de ira. Ela apenas exclui a possibilidade de Deus pecar, de desejar que outros pequem ou que causem o pecado. Se a bondade de Deus é tão misteriosa que ela é compatível com desejar e ativamente tornar certa a Queda e todos os outros males (ainda que apenas por retirar o poder necessário para evitar o pecado) da história humana, ela é sem sentido.
Não há nenhum exemplo dentro da humanidade onde a bondade é compatível com o desejar que alguém faça mal ou peque e que sofra eternamente por isso. Os arminianos estão bem cônscios dos argumentos calvinistas embasados na narrativa do Gênesis, onde os irmãos de José intentaram o cativeiro por mal, mas, porém, Deus o intentou para o bem (Gn 50.20). Os arminianos simplesmente não creem que isto prova que Deus ordena o mal para que possa fazer o bem a partir dele. Os arminianos acreditam que Deus permite o pecado e que extrai o bem a partir do mal. Caso contrário, quem, de fato, é o verdadeiro pecador?
O arminianismo trata, em todos os aspectos, de proteger a reputação de Deus ao proteger seu caráter conforme revelado em Jesus Cristo e na Escritura. Os arminianos não estão preocupados com alguma fascinação humana de justiça; Deus não precisa ser justo. A justiça não é necessária para a bondade. Mas amor e justiça são necessários para a bondade, e ambos excluem a determinação disposta a pecar, a fazer o mal e o sofrimento eterno.
Neste ponto, alguns críticos do arminianismo refutam que proteger o caráter de Deus desta maneira, ao negar o determinismo divino, revela um compromisso primeiramente com a razão em detrimen- to da Escritura6. Isto mostra, pelo menos de acordo com alguns calvinistas, que a Escritura ensina tanto o determinismo exaustivo divino, incluindo a preordenação do pecado quanto a bondade incondicional e absoluta de Deus, sem nenhuma sugestão de injustiça ou falta de santidade. “Todas as coisas, incluindo o pecado, são causadas por Deus – sem Deus violar Sua santidade” e “Quando Deus fala – como Ele claramente o fez em Romanos 9 – então nós devemos simplesmente seguir e acreditar, ainda que não possamos entender e ainda que isso pareça, para nossas mentes débeis, contraditório”7. Palmer, como muitos calvinistas, alegou abraçar o antinomismo – um tipo de paradoxo – sem tentar utilizar a razão para resolvê–lo.
Como muitos críticos do arminianismo, ele acusou os arminianos de utilizar a razão contra a Bíblia para aliviar o paradoxo. Todavia, o próprio Palmer, como muitos calvinistas, também fez uso da razão para tentar aliviar o paradoxo e deixou de notar que os arminianos não rejeitam o paradoxo; eles simplesmente pensam que este paradoxo – que Deus é incondicionalmente bom e, entretanto, preordena o pecado e o mal – não é ensinado nas Escrituras, fazendo dele uma clara con- tradição lógica! Palmer afirmou que a Bíblia ensina que Deus ordena o pecado, e, entretanto, ele ainda tentou tirar Deus do caso ao defender que Deus não causa o pecado, mas que o torna certo por “permissão eficaz”8. Em outras palavras, ele não pode dizer claramente que Deus causa o pecado ou é o autor do pecado. Antes, os humanos são os únicos responsáveis pelo pecado. Deus meramente permitiu que os humanos pecassem (ainda que Ele, de fato, tenha preordenado o pecado). A mente começa a ficar confusa.
Outros calvinistas fornecem a explicação ausente em Palmer. Deus, a típica explicação calvinista diz, retirou o poder moral necessário para que Adão e Eva evi- tassem pecar, de maneira que a rebelião deles era inevitável sem que Deus, de fato, os fizesse pecar. Isto não é uma distinção sem uma diferença? Palmer afirmou que Deus deseja o pecado e a descrença involuntariamente; Deus não se deleita neles ainda que ele os deseje e os efetue9. Ao perceber as dificuldades lógicas desta ale- gação, Palmer disse: “Objeções ao ensino da reprovação (divinamente determinada) são comumente feitas mais embasadas no racionalismo escolástico do que na hu- milde submissão à Palavra de Deus”10. Isto não é apenas um insulto para os arminia- nos como também volta-se contra o próprio Palmer na medida em que ele não está contente em dizer (como o reformador suíço Ulrico Zuínglio, que aceitou bravamente as consequências neste caso) que Deus é o autor do pecado e do mal, e isto levanta sérias questões acerca da bondade de Deus. Em vez disso, Palmer fez uso da razão para tentar guardar a bondade de Deus ao dizer algo que a Bíblia não diz – que Deus efetua o pecado e a descrença de uma maneira diferente da que ele efetua as boas ações e a fé (ao meramente retirar a graça necessária para que as criaturas evitem o pecado e a descrença)11.
Os arminianos, às vezes, ficam pasmos com a aparente disposição ao desconhecimento do arminianismo, por parte de alguns calvinistas, e sua cegueira em relação ao uso de dois pesos e duas medidas em sua crítica ao arminianismo. Eles muito frequentemente são rápidos em enfatizar as falhas no arminianismo e gostam de superestimar tais erros, ao passo que ignoram as falhas em seu próprio sistema ou apresentam desculpas ao citar a antinomia. Entretanto, eles fazem o melhor que podem para aliviar o paradoxo – mas criticam os arminianos por fazerem o mesmo. Mas os arminianos ficariam contentes se seus críticos calvinistas simples- mente reconhecessem que o tema condutor do arminianismo não é a crença no livre-arbítrio, mas o compromisso com certa visão da bondade de Deus; qualquer leitura imparcial de Armínio ou de qualquer um de seus fiéis seguidores mostrará que este é o caso.
Armínio e os Primeiros Arminianos acerca da Bondade de Deus Armínio. Contrário à opinião popular, Armínio não começou com o livre-arbítrio e chegou até a eleição condicional ou graça resistível. Antes, seu impulso teológico básico é absoluto: compromisso com a bondade de Deus. Sua teologia é cristocêntrica; Jesus Cristo é a nossa melhor pista para o caráter de Deus, e nele Deus é revelado como compassível, misericordioso, amável e justo. A teologia de Armínio está incrustada com argumentos contra o calvinismo de todos os tipos – supralapsário e infralapsário. Portanto, é praticamente impossível ilustrar seus pontos de vista com citações diretas sem incluir algumas de suas afirmações mais duras contra o calvinismo. Isto é lamentável, uma vez que a retórica daquela épo- ca era comumente mais incisiva do que a maioria das pessoas hoje se sentiriam à vontade. Os leitores devem lembrar que Armínio estava sob ataques verbais muito fortes e que estava extremamente desapontado; durante sua carreira como teólogo quase que a plenitude de seu tempo foi dedicada a responder a denúncias e acusa- ções de heresia. E a retórica dos calvinistas (incluindo o próprio Calvino) não era menos áspera.
O engajamento de Armínio com a bondade divina aparece especialmente em suas respostas aos calvinistas William Perkins e Francisco Gomaro. O princípio condutor mais básico de Armínio nestes debates era de que Deus é necessariamente bom e bom por natureza; a bondade de Deus controla o poder de Deus. E a bondade de Deus e a glória são inseparáveis; Deus é glorificado precisamente ao revelar sua bondade na criação e redenção12. Deus é bom por uma necessidade natural e interna, não livremente13. Esta foi uma forma que Armínio expressou seu realismo metafísi- co, que se opunha ao voluntarismo nominalista (quer dizer, Deus é bom porque ele escolhe ser bom e que não é bom por natureza). Nitidamente, Armínio temia que o calvinismo de sua época estivesse embasado, como a teologia de Lutero, no nomi- nalismo, que nega que qualquer natureza divina intrínseca e eterna controla o exercício do poder de Deus.
De acordo com Armínio, no calvinismo “a natureza divina ameaça ser consumida na escuridão do Deus oculto do decreto divino [da eleição e reprovação incondicional]”14. Armínio não podia suportar, ainda que minimamente, uma indicação de arbitrariedade ou injustiça em virtude da revelação do caráter de Deus em Jesus Cristo, e esta revelação não esconde um Deus oculto e obscuro que secretamente deseja a destruição dos ímpios – exceto quando estes voluntariamente escolhem sua malignidade em resistência livre à graça de Deus. William Witt, erudito em Armínio, está correto ao afirmar que a principal preocupação de Armínio não era o livre-arbítrio, mas a relação de Deus com as criaturas racionais, e, em espe- cial, a graça de Deus abundando em relação a eles como resultado de sua natureza, que é amor15. “A maior preocupação de Armínio era evitar fazer de Deus o autor do pecado”16. Colocando sem rodeios, para Armínio, Deus não poderia preordenar ou causar direta ou indiretamente o pecado e o mal mesmo que ele quisesse (o que ele não faria), pois isso faria de Deus o autor do pecado. E a natureza boa e justa de Deus exige que ele deseje a salvação de todo ser humano17. Tal visão é totalmente consistente com a Escritura (1 Tm 2.4; 2 Pe 3.9).
Quando Armínio confrontou as teologias de William Perkins e Francisco Go- maro, ele não apelou ao livre-arbítrio como seu princípio crítico, mas à vontade divina. Primeiro, ele argumentou que mesmo o calvinismo brando (em oposição ao supralapsarianismo) não consegue evitar fazer de Deus o autor do pecado ao tor- nar a Queda inevitável, na medida em que ela é mantida pela determinação divina. Perkins era um calvinista típico da época, no sentido de que ele atribuía a Queda à deserção de Deus, da parte dos homens, de maneira voluntária, e, entretanto, tam- bém defendia que a Queda fora preordenada e tornada certa por Deus, que retirou a graça suficiente de Adão e Eva. Para Perkins, Armínio escreveu:
Mas você diz que “a vontade do homem interveio nesta deserção [de Deus]”, porque o “homem não estava desertado, exceto disposto a ser desertado”, eu respondo, se assim for, então verdadeiramente o ho- mem mereceu ser abandonado. Mas eu pergunto se o homem poderia ter desejado não ser abandonado. Se você disser que ele poderia, então ele não pecou necessariamente, mas livremente. Mas se você disser que ele não poderia então a culpa recai sobre Deus18.
Isto é crucial para o argumento de Armínio contra aqueles que dizem que a Que- da aconteceu necessariamente por decreto de Deus e que Deus a desejou e a tornou certa. Então, Deus não é como é revelado ser em Jesus Cristo, nem é perfeitamente bom. Então a culpa recai sobre Deus. Há um lado obscuro em Deus. Sobre o supralap- sarianismo (no qual Deus decreta quem será salvo e quem será condenado antes da criação e da Queda), Armínio declarou: “nenhuma criatura racional foi criada por Deus com esta intenção, para que sejam condenados… pois isto seria injusto”19. Tal doutrina atribui a Deus um plano “pior do que o qual nem mesmo o próprio diabo pôde con- ceber em seu propósito mais maligno”20.
Embora o supralapsarianismo fosse o maior adversário de Armínio, ele percebeu que toda forma de calvinismo que ele conhecia (incluindo o que veio a ser chamado de infralapsarianismo, que diz que Deus decre- tou salvar alguns e condenar indivíduos à luz da Queda) caía na mesma categoria ao tornar a queda da humanidade necessária pelo decreto divino, e então insistindo que Deus incondicionalmente, por decreto, salva apenas uma porção da humanidade caí- da. O núcleo de todo argumento de Armínio contra o calvinismo jaz nesta declaração: Esta criatura não tem outra opção a não ser pecar, pois, abandonada à sua própria natureza, uma lei que é impossível de ser cumprida pelos poderes de sua natureza lhe é imposta. Mas [de acordo com o calvinismo] uma lei impossível de ser cumprida pelos poderes de sua natureza foi imposta ao homem abandonado à sua própria natureza, portanto, o homem abandonado à sua própria natureza obrigatoriamente pecou. E, por consequência, Deus, que deu esta lei, e determinou deixar o homem à sua pró- pria natureza [ao retirar o poder para não pecar] é a causa de o homem ter pecado21.
Armínio falou severamente das consequências lógicas da visão calvinista con- vencional do determinismo divino na Queda, que resultou em pecado e condenação eterna (pois Deus decidiu incondicionalmente ignorar muitos e salvar outros): “se esta ‘determinação’ denotar o decreto de Deus pelo qual Ele resolveu que a vontade deveria ser depravada e que o homem deveria cometer pecado, então a consequên- cia disso é que este Deus é o autor do pecado”22. Armínio foi com todo o ímpeto: “A partir destas premissas [que todas as coisas sucedem necessariamente por decretos divinos, incluindo a Queda] nós deduzimos… que Deus, de fato, peca… [qu]e Deus é o único pecador… [qu]e o pecado não é pecado”23.Mas o argumento de Armínio contra a visão calvinista não é que ela viola o livre-arbítrio! Antes, ele disse: “Esta doutrina é repugnante à natureza de Deus” e injuriosa à glória de Deus24. Que fique claro que embora Armínio frequentemente estivesse, como neste contexto particular, falando sobre o supralapsarianismo, ele, por vezes, saía de seu caminho para observar que “um segundo tipo de predestinação” (infralapsarianismo) lida com as mesmas ob- jeções ao fazer Deus preordenar a Queda; portanto, ele é o autor do pecado25. Em todos os seus escritos contra o calvinismo e a favor do livre-arbítrio, Armínio apelou à natureza e ao caráter de Deus. Ele tinha consciência que os calvinistas negavam que Deus é o autor do pecado ou que fosse, de alguma maneira, manchado pela culpa do pecado, mas ele insistia que esta é, todavia, uma inferência feita a partir do que eles acreditam 26.
Simão Episcópio. Os seguidores remonstrantes de Armínio ecoaram o mé- todo holandês de utilizar o caráter de bondade de Deus como o princípio crítico para rejeitar o determinismo divino e o monergismo, e para aderir ao sinergismo evangélico. Simão Episcópio lidou extensivamente acerca da bondade de Deus como seu atributo primeiro e controlador em sua Confession of Faith (Confissão de Fé), de 1622. Ele asseverou que embora Deus seja livre e não determinado por qualquer necessidade ou causa interior ou exterior, em virtude de sua natureza Deus não pode desejar ou causar o mal27. O “não pode” não é porque Deus não seja capaz, pois, de acordo com Episcópio, Deus é onipotente, o que significa que ele pode fazer qual- quer coisa que não esteja em contradição ou contra sua vontade. Mas Deus pode fazer mais do que ele deseja e sua vontade é guiada por sua natureza, que é boa. A natureza de Deus é perfeita em bondade e justiça; ele jamais faz o mal para alguém. “Ele é o bem supremo, tanto em si mesmo como também para suas criaturas”28. Por que há pecado e mal na criação de Deus se ele é perfeitamente bom e “a fonte inextinguível de todas as coisas que são boas?”29. Porque ele valoriza a liberdade que ele concedeu a suas criaturas humanas, e ele não a revogará ainda que ela seja o meio pelo qual o pecado e o mal adentrem na criação. Deus permite, mas ele não deseja ou causa, o pecado e o mal, “para que ele não erradique a ordem uma vez estabelecida por ele mesmo e destrua e anule a liberdade que deu à sua criatura”30.
Mas Deus nunca impõe o pecado ou o mal a ninguém, o que violaria o caráter de Deus ao torná-lo autor do pecado. Deus concedeu a Adão e Eva todo dom necessá- rio para a obediência e bênção, mas eles se rebelaram mesmo assim, o que explica porque eles e toda a sua posteridade estão condenados (a menos que se arrependem e tenham fé). Para Episcópio, como para Armínio, o calvinismo inexoravelmente faz de Deus o autor do pecado ou torna a Queda necessária por seu decreto e a retirada da graça suficiente para não pecar. Esta opinião torna Deus tolo e injusto e “o verda- deiro e adequado autor do pecado”31. Mais uma vez, assim como Armínio, Episcópio não estava preocupado com o livre-arbítrio por si só, mas com a natureza e o caráter de Deus.
Philip Limborch. Posteriormente, Philip Limborch, um remonstrante de- sertor do arminianismo clássico, também apelou à bondade de Deus ao refutar o calvinismo convencional. Pelo fato de Deus ser inerentemente bom, que sig- nifica justo, a queda da humanidade no pecado não poderia ser resultante de qualquer conselho secreto ou determinação de Deus. Isso faria de Deus, direta ou indiretamente, o autor do pecado e do mal32. Apesar dele não ter sido um bom representante do verdadeiro arminianismo, principalmente em sua doutrina da habilidade moral humana após a Queda, Limborch falou verdadeiramente por todos os arminianos acerca da crença que Deus tornou certa a Queda ao retirar de Adão e Eva (e por implicação da própria humanidade) a graça suficiente para não pecar:
A irracionalidade (para não dizer algo pior) deste argumento aparece logo no primeiro olhar; pois o que pode ser considerado mais injusto do que Deus, ao reter sua graça restritiva suficiente para colocar as criaturas sob uma necessidade fatal de pecar, então puni-las por aquilo que não poderiam deixar de fazer? Se isto não é tornar Deus o autor do mal e acusá-lo com a mais alta injustiça… então não sei o que é: se tal doutrina, tão depreciativa à natureza de Deus, deve ser mantida, deixemos isso para que o mundo julgue33.
Como todos os arminianos, Limborch rejeitou a doutrina da eleição incondicional e, em especial, a reprovação incondicional, não porque ela se desvie do livre-arbítrio, mas porque ela denigre o caráter divino. Ele afirmou a eleição e a predes- tinação condicional como rendendo glória a Deus, mas apelou às Escrituras (1 Tm 2.4; 2 Pe 3.9) para estabelecer a vontade universal de Deus para a salvação e associou essa vontade com o amor de Deus como seu atributo básico: “a doutrina da repro- vação absoluta é repugnante às perfeições divinas de santidade, justiça, sinceridade, sabedoria e amor ”34. Ele também disse:
O que pode ser mais desonroso, o que pode ser mais indigno de Deus do que torná-lo o autor do pecado, que é tão extremamente inconsistente com sua san- tidade, algo que ele severamente proíbe e ameaça punir com nada menos do que tormentos eternos? Certamente isto é tão monstruoso que a simples consideração deveria ser o suficiente para dissuadir todos os que se preocupam com a glória de Deus de adotar tal doutrina grosseira e indecorosa35.
Conclusão.
Observem o padrão em todos os argumentos. Nenhum destes autores apelou ao livre-arbítrio como o primeiro princípio de construção teológica ou princípio crí- tico para rejeitar o determinismo divino e o monergismo. Se os críticos calvinistas estivessem corretos, nós encontraríamos os arminianos dizendo coisas do tipo: “A preordenação de Deus de todas as coisas, incluindo a Queda, não pode ser verda- deira porque isto privaria os seres humanos de seu livre-arbítrio”. Mas não é isto que encontramos na literatura arminiana (em oposição, talvez, a panfletos religiosos populares ou clichês proferidos por pessoas que pensam que são arminianas!). Os verdadeiros arminianos sempre embasaram sua crença na liberdade da vontade e na negação do determinismo divino, incluindo o livre-arbítrio incompatibilista, e no princípio da bondade de Deus. Tendo em conta a abundância de mal no mundo oriundo da Queda da humanidade no jardim, o livre-arbítrio, e não o determinismo divino, deve ser a causa, ou caso contrário Deus seria o autor de todos esses peca- dos, tornando seu caráter moralmente ambíguo e sua reputação questionável. Este é o padrão do argumento arminiano. Claro, os calvinistas ainda podem afirmar que os arminianos estão motivados por uma “crença no livre-arbítrio quase idólatra” por si só (ou ainda por motivos de equidade), pois isto simplesmente não consta na literatura, o que revela que os arminianos estão primeiramente preocupados com a bondade de Deus e não com o livre-arbítrio ou equidade.
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1 RITCHIE, Rick. “A Lutheran Response to Arminianism”, Modern Reformation, n. 1,
1992. p. 12.
2 RIDDLEBARGER, Kim. “Fire and Water”, Modern Reformation, n. 1, 1992. p. 9.
3 PETERSON, Robert A.; WILLIAMS, Michael D. Why I Am Not An Arminian. Downers
Grove, III.: InterVarsity Press, 2004. p. 157.
4 PALMER, Edwin H. The Five Points of Calvinism. Grand Rapids: Baker, 1972. p. 85, 103, 106.
5 Estou bem consciente de que os calvinistas (e outros deterministas divinos) dizem que Deus é plenamente bom e apelam para um bem maior que justifica a preordenação de Deus do pecado e do mal. Mas os arminianos querem saber que bem maior pode possivelmente justificar o Holocausto? Que bem maior pode possivelmente justificar o fato de que uma porção significante da humanidade deva sofrer eternamente no inferno à parte de quaisquer ações genuinamente livres que eles ou sua cabeça federal tenham feito? Apelar para a glória de Deus e justificar a reprovação incondicional para o inferno, conforme Wesley disse, faz com que nos arrepiemos de medo. Que tipo de Deus é este que é glorificado ao preordenar e reprovar as pessoas para o inferno de maneira incondicional? Se o apelo pela necessidade do inferno for feito para a manifestação do atributo de justiça de Deus, os arminianos perguntam se a cruz foi insuficiente.
6 Ibid. p. 85.
7 Ibid. p. 101, 109.
8 Ibid. p.98.
9 Ibid. p. 106-7.
10 Ibid. p. 107.
11 Ibid. p. 106. Pelo fato da equidade ser uma preocupação principal aqui, só é correto reconhecer que alguns calvinistas afirmam o monergismo da salvação sem ir até o ponto do determinismo divino absoluto de todas as coisas. Peterson e Williams, por exemplo, parecem dizer que Deus não é moralmente manchado pelo pecado e descrença dos réprobos ou por ignorá-los na eleição, pois eles herdam o pecado de Adão e nascem condenados, assim como os corruptos. Portanto, eles merecem o inferno; Deus é misericordioso pelo fato de escolher salvar alguns dentre a massa de condenação. “O próprio homem causa a descrença. A descrição arminiana dos calvinistas como crendo que Deus cria pessoas para serem pecadoras e então as condena por ser o que Ele as fez ser é uma deturpação grosseira… Sim, Deus é a causa da descrença… Mas ele não precisa causar a descrença. Nossa queda em Adão já fez isso” (Why I Am Not An Arminian, p. 132-3). Entretanto, isto não apenas parece contradizer Calvino e Palmer (ambos afirmam o determinismo exaustivo divino), como também levanta sérias questões acerca do motivo pelo qual Adão e Eva pecaram. Qual foi o envolvimento de Deus no caso? E se Deus salva alguns da massa da perdição incondicionalmente, por que Ele não salva todos? Peterson e Williams escrevem: “Ao passo que Deus ordena que todos se arrependam e não se deleita na morte do pecador, todos não são salvos porque não é a intenção de Deus dar sua graça redentora a todos” e “nós não sabemos por que Deus escolheu salvar um, mas não o outro” (ibId. p. 128, 130). O arminiano tem o mesmo problema com isto, assim como com a visão calvinista mais extrema (mas talvez historicamente normativa) de que Deus preordenou a Queda de Adão e Eva e o destino eterno de cada pessoa de maneira incondicional. Em efeito, isto é a mesma coisa. Uma vez que Adão e Eva caíram (que não pode ser pelo livre-arbítrio libertário deles, uma vez que Peterson e Williams rejeitam a liberdade incompatiblista como incoerente), Deus escolhe salvar alguns independente de suas próprias escolhas livres libertárias. Se Deus é bom de algum modo análogo ao melhor da bondade humana (como Deus as ordena e pede para que o imitemos nessas ações de bondade!), por que ele relega algumas pessoas para o sofrimento eterno incondicionalmente? A questão não é equidade, mas bondade e amor. Apelar para a ignorância não resolve nada; o caráter de Deus ainda fica denegrido, pois seja lá qual for a razão para tal, ela não tem nada a ver com a bondade ou maldade das escolhas livres. A única alternativa é a arbitrariedade divina. Todavia, eu reconheço que a maioria dos calvinistas não considera Deus arbitrário ou o autor do pecado e do mal, ainda
que os arminianos não consigam ver como eles podem evitar estas conclusões.
12 ARMINIUS. “Oration II,” Works. v. 1, p. 364.
13 Id. “Certain Articles to Be Diligently Examined and Weighed”, Works. v. 2, p. 707.
14 ARMUNIUS, James in WITT, William. Creation, Redemption and Grace in the Theology of Jacob Arminius. Indiana, University of Notre Dame, 1993. Dissertação de Doutorado. p.
312.
15 WITT, William. Creation, Redemption and Grace in the Theology of Jacob Arminius. Indiana, University of Notre Dame, 1993. Dissertação de Doutorado. p. 419.
16 Ibid. p. 690.
17 Ibid. p. 622.
18 ARMINIUS. “An Examination of Dr. Perkins’s Pamphlet on predestination”, Works. v. 3, p. 375.
19 ARMINIUS. “An Examination of the Theses of Dr. Franciscus Gomarus Respecting
Predestination”, Works. v. 3, p. 602.
20 Ibid. p. 603.
21 Id. “Friendly Conference of James Arminius… with Mr. Franciscus Junius, About
Predestination”, Works. v. 3, p. 214.
22 Id. “Nine Questions”, Works. v. 2, p. 65.
23 Id. “A Declaration of Sentiments”, Works. v. 1, p. 630.
24 Ibid. p. 623, 630.
25 Ibid. p. 648.
26 Id. “Theses of Dr. Franciscus Gomarus”, Works. v. 3, p. 654
27 EPISCOPIUS, Simon. Confession of Faith of Those Called Arminians. London: Heart
& Bible, 1684. p. 84.
28 Ibid. p. 85.
29 Ibid. p. 87.
30 Ibid. p. 85. Observe que ainda que possa parecer que Armínio e os arminianos façam da liberdade o propósito último de Deus na criação e, portanto, o seu maior bem, este não é, de fato, o caso. Quando Armínio e os arminianos dizem que Deus valoriza o livre-arbítrio de suas criaturas e que não os privará dele, eles não querem dizer que o livre-arbítrio seja bom por e em si mesmo. Antes, Deus cria e preserva o livre-arbítrio por causa de um bem maior, que é adequadamente colocado pelo teólogo metodista Thomas Oden, conforme explica a razão pela qual Deus permite o pecado: “Deus não quer o pecado, mas ele permite o pecado visando à preservação de pessoas livres, compassivas e autodeterminadas com as quais quer transmitir amor e santidade divinos incomparáveis. (John Wesley’s Scriptural Christianity. Grand Rapids: Zondervan, 1994. p. 172). Em outras palavras, o bem maior que exige o livre-arbítrio é um relacionamento de amor que Armínio acredita que não pode ser determinado por ninguém além das pessoas que amam.
31 Ibid. p. 104.
32 LIMBORCH, Philip. A Complete System, or, Body of Divinity, trad. William James. London: John Darby, 1713. p. 68-9.
33 Ibid. p. 88.
34 Ibid. p. 371.
35 Ibid. p. 372.
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