opinião
Ed René Kivitz: cartadas novas de uma jogada velha
Considerações sobre a sua teologia liberal.
Nestes dias, tem recebido repercussão nas redes sociais um trecho de vídeo em que Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca (São Paulo-SP), fala que a Bíblia precisa ser “atualizada”. Diante da (justificada) comoção que se verificou no mundo evangélico brasileiro, fui assistir aos 49 minutos e 31 segundos do vídeo, que, veiculado em 25 de outubro de 2020, faz parte de uma série de sermões acerca das Epístolas Paulinas, sob o título “Cartas para um novo mundo”. No caso em tela, a palestra, que versa sobre a Epístola a Filemom, vem intitulada como “Cartas vivas contra letras mortas”.
Haja vista o trecho antecipadamente conhecido e o fato de Ed René Kivitz ter um histórico de inclinações heterodoxas, era de se esperar algo contrário às doutrinas bíblicas, mas eu confesso ter me espantado com a total despreocupação do palestrante em manter qualquer traço de compromisso com o cristianismo histórico. Com seu jeito manso de falar, e aquele ar de desapego típico de gurus progressistas da pós-modernidade, Kivitz vai encadeando uma profusão de ataques frontais à herança protestante, numa investida crescente, “fervorosa” e ironicamente próxima das comemorações da Reforma do Séc. XVI.
Antes de tecer comentários sobre a natureza das proposições de Kivitz, e atendendo à sequência em que surgem no discurso, eis um necessário resumo:
De acordo com Ed René Kivitz, a Epístola de Paulo a Filemom “legitima a escravidão”; merece uma outra “leitura interpretativa”; precisa sair de sua “insuficiência”; precisa ser lida contra todas as relações hierarquizadas, e a favor das relações igualitárias. Para ele, o Evangelho “denuncia” todas as relações de hierarquia entre os seres humanos. Ainda nessa linha, ele diz que “precisamos ler a Bíblia com outras lentes”, e que o amor, numa relação, “acaba a hierarquia”.
Kivitz declara que há uma proximidade entre Paulo, Cícero e Sêneca, assim como o cristianismo paulino e o estoicismo (em outro vídeo ele diz que não existe ortodoxia, e que as ideias de Paulo eram emprestadas de outras tendências, como o próprio estoicismo) – no sermão ora referido, ele afirma que a diferença entre o cristianismo e o estoicismo é que aquele traz o elemento místico. O derramamento do Espírito, profetizado por Joel e comentado por Pedro, teria sido uma experiência de universalização da paternidade divina, agora não mais restrita aos judeus.
Prosseguindo, o palestrante diz que a interpretação bíblica não deve ser “individual”, mas deve transbordar para “ações concretas de justiça e dignidade humana”; que a Bíblia deve ser olhada “como um livro insuficiente” (algo que repete); que a Bíblia deve ser “relida”, “ressignificada” e “atualizada” (nisso ele menciona o texto de Dt 22.28,29, em que se determina ao violador indenizar a família da moça violada, para sugerir que a passagem exemplificaria a desatualização da Escritura). Declara ele que a Bíblia é “insuficiente nas suas linhas”, e que em suas “entrelinhas” ela “explode promovendo uma grande revolução e uma grande transformação no mundo”, conforme a revelação do Cristo ressurreto.
Avançando cada vez mais em sua loucura “teológica”, Kivitz afirma que a submissão da mulher ao marido é “machismo”; que precisamos “enfrentar os pecados de gênero da sociedade” – nesse ponto ele fala da “homoafetividade dos gays que frequentam nossas comunidades e que continuam sendo condenados ao inferno por causa de dois ou três textos bíblicos que não foram atualizados”. Acrescenta que muitas injustiças são legitimadas por versículos bíblicos; que não é possível ler a Bíblia “como um texto que revela verdades absolutas”; que não somos seguidores de um livro, mas de Jesus Cristo, e que ela não é “um código moral”.
Mais para a conclusão, Ed René Kivitz declara que esse é “um caminho sem volta” para ele, e que espera que “seja um caminho sem volta para você” (misericórdia!). Diz também que a Bíblia, livro “antigo”, precisa ser atualizada para “um novo mundo”…
Feito este registro, tenho a observar, primeiro, que, num só discurso, Ed René Kivitz atenta agressivamente contra as doutrinas da inspiração divina, autoridade, inerrância, suficiência, eternidade e caráter absoluto das Escrituras Sagradas, as quais são pressupostos válidos de uma interpretação bíblica adequada. Ele não tenta esconder nada disso – antes, parece gostar de repetir que a Bíblia tem de ser “atualizada” ou que não seria ela suficiente. Deve ser isto o que ele entende por atitude corajosa perante a “religiosidade” que tanto critica.
A afronta é tão grande que beira ao didatismo, já que, sem cerimônia, Kivitz promove um acintoso desfile de características da teologia liberal, o que pode ter o curioso efeito de curar a cegueira de quem nega haver liberalismo teológico no mundo de hoje (estou sendo irônico: liberais não creem em milagres). Sua fala reúne descrença na Bíblia como perfeita Palavra de Deus, plena rendição aos espíritos pós-modernistas do pluralismo, do relativismo e do politicamente correto, bem como uma hermenêutica progressista que busca, não o significado verdadeiro dos textos bíblicos, mas, sim, o significado “justo”, pelos critérios da esquerda teológica – o que ele chama de “justiça” e “dignidade” não pode restar em dúvida quando, mais à frente, ele atrai conceitos ideológicos próprios da teologia inclusiva (leia-se: teologias feminista, gay, negra etc.).
Ao recorrer ao preceito de Dt 22.28,29 sem operar uma interpretação histórico-gramatical, Kivitz tenta convencer o ouvinte de que a Bíblia se submete aos preconceitos e discriminações da época de sua elaboração, entendimento este que desconsidera o contexto social, político e jurídico em que a Lei de Moisés foi decretada, e que não atenta para a importante partição didática do Código Mosaico em Lei Civil, Lei Cerimonial e Lei Moral – sem muito esforço, pode-se perceber que Dt 22 reproduz normas de direito endereçadas a Israel como nação, cuja aplicação aos tempos atuais não pode ser realizada sem apreensão racional dos princípios que as informam.
A título de exemplo, se hoje a Lei do Talião é tida por demasiado gravosa, àquela época (de mais de 3 mil anos passados) constituiu enorme progresso legislativo, pois veio suceder um regime de vingança que ultrapassava a personalidade do autor do crime, atingindo sua família ou tribo – com o mencionado instituto jurídico, adveio a reciprocidade, algo que em nossos dias, ainda que não aplicado da mesma forma no direito ocidental, permanece na base de princípios como a proporcionalidade, a isonomia e a individualização da pena.
Ocorre que o liberalismo inclusivista e progressista de Kivitz não lhe permite enxergar as boas premissas do método histórico-gramatical. Seu intento é escalpelar as Escrituras, retirando-lhe o que não lhe interessa, o que não se ajusta à sua visão de mundo, à sua ideologia, ao seu credo esquerdista e pós-moderno.
A empreitada de Kivitz recorda a figura de Marcião, herege gnóstico do Séc. II d.C. que, desacreditando no “Deus do Antigo Testamento” e em tudo o que, no Novo, fazia referência à religião judaica, criou o seu próprio cânon, formado por uma versão peculiar das Epístolas de Paulo e do Evangelho de Lucas. E é isso que a velha incredulidade produz: uma Bíblia mutilada, com textos “selecionados”, “editados” e “reinterpretados” por intelectuais cuja falta de fé é vendida como “justiça social”, “tolerância”, “amor” etc. Mais do que isso: assim como Marcião partia de uma repulsa fundamental pela cultura judaica, Kivitz demonstra não conhecer o caráter do Deus revelado no Antigo Testamento, Aquele mesmo que Se revelou na Pessoa de Jesus Cristo.
Nessa esteira, em vez de “cartas vivas para um novo mundo”, o que Ed René Kivitz faz é dar cartadas novas de uma jogada velha, a qual atende pelo nome de “teologia liberal”. Como o diabo adota a estratégia de semear dúvida sobre sua própria existência, o liberalismo teológico orgulha-se de sufocar a fé enquanto finge não existir.
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